sábado, 31 de outubro de 2009

Oração ao Deus desconhecido de Friedrich Nietzsche.

Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar
para frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a Ti
na direção de quem eu fujo.

A Ti, das profundezas de meu coraçao,
tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento,
Tua voz me pudesse chamar.

sobre esses altares estão gravadas
em fogo estas palavras: "Ao Deus desconhecido".

Seu, sou eu, embora até o presente
tenha me associado aos sacrílegos.
Seu, sou eu, não obstante os laços
que me puxam para o abismo.

Mesmo querendo fugir,
sinto-me forçado a servi-Lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu, que me penetras a alma e,
qual turbilhão, invades a minha vida.

Tu, o incompreensível, mas meu semelhante,
quero Te conhecer, quero servir só a Ti.

Friedrich Nietzsche.

Homilia do dia de todos os Santos



Caros irmãos e irmãs a nossa celebração eucarística convida-nos a compartilhar o júbilo celeste dos santos, a saborear a sua alegria. Os santos não são uma exígua casta de eleitos, mas uma multidão inumerável, para a qual a liturgia de hoje nos exorta a levantar o olhar. Eles são uma multidão, não correspondem somente os santos oficialmente reconhecidos, mas os batizados de todas as épocas e nações, que procuraram cumprir com amor e fidelidade a vontade divina.
Nesta solenidade de hoje, a Igreja festeja a sua dignidade de "mãe dos santos, imagem “civita dei" (Agostinho), e manifesta a sua beleza de esposa imaculada de Cristo, nascente e modelo de toda a santidade (Lumem gentium, 48). Não falta santos na Igreja, não obstante existe diversos faltosos e rebeldes. Para Bento XVI “é nos santos que a Igreja reconhece os seus traços característicos, e precisamente neles saboreia a sua glória mais profunda”.
Nesse dia a Igreja militante (aquela que cainha neste mundo) honra a Igreja triunfante do Céu celebrando numa única solenidade todos os Santos. É como diz a oração da pós comunhão da Missa: para que nesta mesa de peregrinos, passemos ao banquete do vosso Reino”. Essa solenidade é para render homenagem aquela multidão de Santos que povoam o Reino dos céus que São João viu no Apocalipse: “Ouvi então o número dos assinalados: cento e quarenta e quatro mil assinalados, de toda tribo dos filhos de Israel… Depois disso, vi uma grande multidão que ninguém podia contar, de toda nação, tribo, povo e língua: conservavam-se em pé diante do trono e diante do Cordeiro, de vestes brancas e palmas na mão,”. Estes eram os sobreviventes da grande tribulação; lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro.” (cf. Ap 7,4 - 14)
Esta imensa multidão de 144 mil, “que está diante do Cordeiro” compreende todos os servos de Deus, ao qual a Igreja canoniza através da decisão infalível do Papa, e todos aqueles, incontáveis, que conseguiram a salvação, e que desfrutam da visão beatífica de Deus. Este povo compreende os santos do Antigo Testamento, a partir do justo Abel e do fiel Patriarca Abraão, os do Novo Testamento, os numerosos mártires do início do cristianismo e também os beatos e os santos dos séculos seguintes, até as testemunhas de Cristo desta nossa época. Todos eles são irmanados pela vontade de encarnar o Evangelho na sua existência, sob o impulso do eterno animador do Povo de Deus, que é o Espírito Santo.
Mas "para que servem o nosso louvor aos santos, o nosso tributo de glória, esta nossa solenidade?". Com esta interrogação tem início uma famosa homilia de São Bernardo para o dia de Todos os Santos. Ele conclamava seus confrades a imitação dos santos no que corresponde ao desejo de ver a Deus e ficar com Ele. O santo dizia: Bem-aventurados os limpos de coração, e verdadeiramente bem-aventurados, porque eles verão aquela face divina, a qual os anjos sempre estão vendo e sempre estão desejando ver. A vós, Senhor, diz o meu coração: Nenhuma coisa desejo, senão ver-vos de face a face, porque nenhuma outra há para mim, nem na terra nem no mesmo céu. Desmaia o meu coração nas ânsias deste desejo, porque só o Deus do meu coração é o único e todo o bem que o pode satisfazer. E quando chegará aquela ditosa hora em que, com a vista de vosso rosto, fique satisfeito? Mas, ai de mim — diz Bernardo — que pela pouca limpeza de meu coração — quero-o dizer com as suas próprias palavras — ai de mim, que a impureza e imundícia de meu coração impede-me e faz indigno de ser admitido àquela bem-aventurada vista! Ora, Se isto dizia de si um coração tão puro, um coração tão santo, um coração tão elevado, tão estático, tão seráfico e tão abrasado no amor divino, se isto dizia no coração de Bernardo a humildade, que dirá noutros corações a verdade? Se o corpo estiver no claustro, e o coração no mundo? Se o coração, depois de se dar a Deus, estiver sacrificado ao ídolo? Se o coração, que devera estar cheio de caridade e amor de Deus, estiver ardendo em amor que não é caridade? Se as palavras, que saem do coração, e os pensamentos, que não saem, forem envoltos em impureza? Ai de tal coração e de quem o tem. Eis, portanto, o significado da solenidade hodierna: contemplando o exemplo luminoso dos santos, despertar em nós o grande desejo de ser como os santos: felizes por viver próximos de Deus, na sua luz, na grande família dos amigos de Deus. Ser santo significa: viver na intimidade com Deus, viver na sua família. Esta é a vocação de todos nós, reiterada com vigor pelo Concílio Vaticano II, no capítulo V da Lumen gentium.
A mesma “Lúmen gentium” do Vaticano II, lembra que: “Pelo fato de os habitantes do Céu estarem unidos mais intimamente com Cristo, consolidam com mais firmeza na santidade toda a Igreja. Eles não deixam de interceder por nós junto ao Pai, apresentando os méritos que alcançaram na terra pelo único mediador de Deus e dos homens, Cristo Jesus. Por seguinte, pela fraterna solicitude deles, a nossa fraqueza recebe o mais valioso auxílio” (LG 49). Com esta mesma convicção, na hora da morte, S. Domingos de Gusmão dizia a seus frades: “Não choreis! Ser-vos-ei mais útil após a minha morte e ajudar-vos-ei mais eficazmente do que durante a minha vida”. E Santa Teresinha confirmava este ensino dizendo: “Passarei meu céu fazendo bem na terra”.
Mas como alcançar esta tão sonhada santidade dos bem-aventurados? Para ser santo não é necessário realizar ações nem obras extraordinárias, nem possuir carismas excepcionais, nem ser adivinhos e videntes.para ser santo é preciso, sobretudo ouvir Jesus e depois segui-lo sem desanimar diante das dificuldades. "Se alguém me serve Ele admoesta-nos que me siga, e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo. Se alguém me servir, o Pai há de honrá-lo" (Jo 12, 26). Quem nele confia e o ama com sinceridade, como o grão de trigo sepultado na terra, aceita morrer para si mesmo. Com efeito, Ele sabe que quem procura conservar a sua vida para si mesmo, perdê-la-á, e quem se entrega, se perde a si mesmo, precisamente assim encontra a própria vida (cf. Jo 12, 24-25).
A experiência da Igreja demonstra que cada forma de santidade, embora siga diferentes percursos, passa sempre pelo caminho da cruz, pelo caminho da renúncia a si mesmo. As biografias dos santos descrevem homens e mulheres que, dóceis aos desígnios divinos, enfrentaram por vezes provações e sofrimentos indescritíveis, perseguições e o martírio. Perseveraram no seu compromisso, "vêm da grande tribulação lê-se no Apocalipse lavaram as suas túnicas e branquearam-nas no sangue do Cordeiro" (Ap 7, 14). Os seus nomes estão inscritos no livro da Vida (cf. Ap 20, 12); a sua morada eterna é o Paraíso. O exemplo dos santos constitui para nós um encorajamento a seguir os mesmos passos, a experimentar a alegria daqueles que confiam em Deus, porque a única verdadeira causa de tristeza e de infelicidade para o homem é o fato de viver longe de Deus.
A santidade exige um esforço constante, mas é possível para todos porque, mais do que uma obra do homem, é sobretudo um dom de Deus, três vezes Santo (cf. Is 6, 3). Na segunda Leitura, o Apóstolo João observa: "Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos!" (1 Jo 3, 1). Portanto, é Deus que nos amou primeiro e, em Jesus, nos tornou seus filhos adotivos. Na nossa vida tudo é dom do seu amor: como permanecer indiferente diante de um mistério tão grande? Como deixar de responder ao amor do Pai celestial, com uma vida de filhos reconhecidos? Em Cristo, entregou-se inteiramente a nós e chama-nos a um profundo relacionamento pessoal com Ele. Portanto, quanto mais imitarmos Jesus e permanecermos unidos a Ele, tanto mais entraremos no mistério da santidade divina.
Assim, o caminho para tudo isso é buscar ardentemente ser um bem-aventurado. Jesus é o Santo principal, é através dele que toda santidade eclesial sustenta seu alicerce. Com efeito, Ele é o verdadeiro pobre de espírito, o aflito, o manso, aquele que tem fome e sede de justiça, o misericordioso, o puro de coração, o pacificador; Ele sofre perseguição por causa da justiça. As Bem-Aventuranças revelam-nos a fisionomia espiritual de Jesus e assim exprimem o seu mistério, o mistério da Morte e da Ressurreição, da Paixão e da alegria da Ressurreição. Este mistério, que é mistério da verdadeira bem-aventurança, convida-nos ao seguimento de Jesus e, deste modo, ao caminho que conduz a ela. Na medida em que aceitamos a sua proposta e nos colocamos no seu seguimento cada qual nas suas próprias circunstâncias também nós podemos participar das Bem-Aventuranças. Juntamente com Ele, o impossível torna-se possível e até um camelo pode passar pelo fundo de uma agulha (cf. Mc 10, 25); com a sua ajuda, somente com a sua ajuda podemos tornar-nos perfeitos como é perfeito o Pai celeste (cf. Mt 5, 48).


Pe. Fantico Nonato Silva Borges, CM

sábado, 24 de outubro de 2009

ECONOMIA E TRABALHO



I. Introdução
Nosso trabalho é uma tentativa de comentar sobre o binômio trabalho e economia. Para melhor compreender aquilo que se anela expor aqui acreditamos ser importante uma conceitualização dos dois principais termos deste referido estudo.
Com referência ao termo trabalho a palavra aqui quer significar toda atividade realizada pelo homem, tanto a manual como a intelectual. Isto quer dizer que se deve reconhecer como trabalho humano toda atividade que o homem é capaz, e está disposto a fazer por sua própria natureza. O trabalho identifica o ser humano, pois por meio dele o ser humana transforma seu ambiente natural.
Já o conceito economia é bem mais complexo, por que envolve um conjunto de relações. O que nesta pesquisa chamaremos de economia é a articulação entre a força de trabalho, os meios de produção e acumulação dos bens. A economia, portanto será vista como a administração destas forças numa relação harmoniosa e equilibrada. Ora, o que se pretende definir neste conceito é a estreita relação entre trabalho e produção numa que valorize e favoreça o equilíbrio humano da posse dos bens produzidos.
Esta conceituação já demonstra que a economia está vinculada (esta vinculação como subordinação ao humano) a atividade humana como conseqüência das múltiplas relações de indivíduos. Daí que se pode falar de economia de mercado, política, doméstica e etc.
Nosso intento nestas paginas será apontar alguns aforismas que ajudem a identificar os problemas atuais que envolvem o trabalho e a economia, gerando um conflito entre o ético e econômico. A tônica aqui desenvolvida será efetuada em três momentos. Primeiro vamos apontar os aspectos bíblico-teológicos do binômio, buscando perceber como estes aspectos aparecem nos textos sagrados; quais os princípios fundamentais e a natureza do trabalho. Depois no segundo momento vamos deter-nos mais naquilo que diz respeito aos aspectos antropológicos da relação trabalho e economia. Neste ponto queremos defender a tese que a economia somente é viável se colocar no centro de seus interesses o ser humano como fim e não como meio. Por fim abordaremos como o binômio se desenvolveu nos últimos tempos e quais dificuldades se deverão enfrentar para construir uma economia que sirva, de fato, para criar um mundo sociabilizado e humanamente possível. Daremos atenção neste ponto da pesquisa aos aspectos sócio-econômicos da relação sujeito e objeto do trabalho e da economia.

II. A NATUREZA DO TRABALHO: ASPECTOS TEOLÓGICOS.

A natureza do trabalho humano, segundo um víeis teológico, pode ser interpretado à luz das primeiras páginas do Livro do Gênesis (Gn 1, 28-30; 3, 19), onde o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência humana sobre a terra. “O trabalho humano procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus, e chamadas a prolongar, umas com as outras, a obra da criação dominando a terra.”[1] O trabalho visto desta forma é um prolongamento da ação criadora de Deus, onde o homem é “co-criador” com o Senhor. Visto assim, “o trabalho honra os dons do Criador e os talentos recebidos”.[2] É importante destacar que o texto sagrado expressa uma verdade fundamental: o trabalho não é somente fonte econômica, mas expressão da dignidade humana e sua co-participação na obra criadora. Portanto o trabalho possui uma dimensão mistérica e teologal.
O trabalho para o homem não é apenas uma atividade econômica, mas exprime uma exigência natural. O Papa João XXIII já lembrava disso quando afirmava que “no que diz respeito às atividades econômicas, é claro que, por exigência natural, cabe à pessoa não só a liberdade de iniciativa, senão também o direito ao trabalho”.[3]
O trabalho como parte da estrutura fundamental da vida humana tem o seu papel ontológico como exercício pessoal. Deus criando o ser humano à sua Imagem quis que homem e mulher participassem como colaboradores pelo trabalho no acabamento do mundo. A criatura imagem de Deus recebe o mandato de seu Criador de submeter e dominar a terra[4], tal ação é mediada pelo trabalho. No desempenho deste mandato, o ser humano, reflete a própria ação do Criador no mundo e na história. O trabalho entendido como uma atividade “transformadora”, quer dizer, uma atividade que recria ou constrói a partir da obra divina, iniciando-se no sujeito, direciona-se a um objeto exterior e não pode deixar de pressupor o sujeito da atividade. Desta forma já se aponta, aqui, que o trabalho não é para alienar, subtrair ou anular a pessoa, ao contrário, ele deve vislumbrar a específìca missão do ser humano. Neste sentido ler-se na Pacem in Terris: “a exigência de poder a pessoa trabalhar em tais condições que não se lhe minem as forças físicas nem se lese a sua integridade moral.”[5]
O Papa Paulo VI alude que desde o nascimento o ser humano é orientado ao desenvolvimento de sua vocação diante do mundo:
Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação. É dado a todos, em germe, desde o nascimento, um conjunto de aptidões e de qualidades para as fazer render: desenvolvê-las será fruto da educação recebida do meio ambiente e do esforço pessoal, e permitirá a cada um orientar-se para o destino que lhe propõe o Criador. Dotado de inteligência e de liberdade, é cada um responsável tanto pelo seu crescimento como pela sua salvação. Ajudado, por vezes constrangido, por aqueles que o educam e rodeiam, cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso: apenas com o esforço da inteligência e da vontade, pode cada homem crescer em humanidade, valer mais, ser mais.[6]
O trabalho carrega em si mesmo uma forte conotação comunitária, e o seu papel, como fator produtivo das riquezas espirituais e materiais, aparece para além do econômico, pois evidencia que o trabalho de um homem se cruza naturalmente com o de outros homens. Hoje mais do que nunca, trabalhar é um trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros: torna-se cada vez mais um fazer coisa para alguém. O trabalho é tanto mais fecundo e produtivo, quanto mais o homem é capaz de conhecer as potencialidades criativas da terra e de ler profundamente as necessidades do outro homem, para o qual é feito o trabalho. [7]
O Papa João Paulo II afirma que o trabalho deve ser uma atividade que realize e aprofunde cada vez mais a dignidade do ser humano. O homem realizando as “diversas ações que fazem parte do processo do trabalho; estas, independentemente do seu conteúdo objetivo, devem servir todas para a realização da sua humanidade e para o cumprimento da vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razão da sua mesma humanidade”.[8] E completa o papa:
O homem deve trabalhar, quer pelo fato de o Criador lhe ter ordenado, quer pelo fato da sua mesma humanidade, cuja subsistência e desenvolvimento exigem o trabalho. O homem deve trabalhar por um motivo de consideração pelo próximo, especialmente consideração pela própria família, mas também pela sociedade de que faz parte, pela nação de que é filho ou filha, e pela inteira família humana de que é membro, sendo como é herdeiro do trabalho de gerações e, ao mesmo tempo, co-artífice do futuro daqueles que virão depois dele no suceder-se da história. [9]
Portanto, à luz da Palavra de Deus, o trabalho é a atividade para todo ser humano, o dinamismo pelo qual ele se auto-realiza. Em vista disso o trabalho humano encontra o seu sentido e o seu fim quando, fecundado pela fraternidade de toda criatura, se converte de uma ação pessoal em vista da dignidade do sujeito, a uma elevação da dignidade de toda humanidade. Diante da racionalidade econômico-capitalista é preciso lembrar que a expropriação ou dominação do trabalho do outro fere o princípio da dignidade humana e torna o trabalho uma escravidão e uma degeneração da pessoa, que não mais se encontra como sujeito frente ao objeto.

III. A RELAÇÃO ENTRE ECONOMIA E TRABALHO EM SUAS MATRIZES ANTROPOLÓGICAS.

Neste ponto, analisaremos o binômio economia e trabalho, buscando evidenciar os seus aspectos antropológicos. Pensamos ser um ponto importante para se tratar, uma vez que, o ser humano é o sujeito desta relação. É salutar ter presente que o ser humano é o autor, o centro e o fim de toda vida econômico-social.[10] O que está em jogo é a inegável dignidade de pessoa humana como fundamento de toda economia justa. É difícil haver uma economia justa onde o humano é desrespeitado em seus direitos fundamentais. Para se ter uma ordem econômico-social equilibrada é preciso vislumbrar aquilo que diz a Pacem in Terris: “Em uma convivência humana bem constituída e eficiente é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direito e deveres universais, invioláveis e inalienáveis”.[11]
Com respeito ao trabalho, é imprescindível tomar consciência de seu primado sobre o lucro. “O trabalho é a chave essencial de toda questão social”[12], alerta o Papa João Paulo II. Ele ainda afirma que o ser humano não pode viver sem trabalho e que o homem é sujeito e não objeto na relação economia e trabalho, “...uma vez que o domínio do homem sobre a terra se realiza no trabalho e mediante o trabalho”[13] e por fim é “preciso acentuar e pôr em relevo o primado do homem no processo de produção, o primado do homem em relação às coisas”.[14]
O trabalho constitui, portanto esta atividade de capital importância no desenvolvimento da vida humana. Sendo por isso defendido o dever e o direito ao trabalho. O trabalho é meio de sustento, de realização e de sociabilidade, além de possuir uma dimensão religiosa de transcendência para Deus, como já apontamos no início deste artigo. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhece-se o direito ao trabalho como algo fundamental para o desenvolvimento humana e a conquista de uma vida digna.

Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.[15]
Para que essa atividade venha a ser realizada sem prejuízo, é preciso que sejam observadas e garantidas as condições humanas do trabalho. Por isso, é injusto um trabalho que destrói o homem ou o impede de realizar-se como sujeito de dignidade inalienável. Um sistema econômico, desenvolvido ou em desenvolvimento, que não favorece ao trabalhador as condições dignas cresce injustamente e é humanamente inaceitável. Se o trabalho ao qual o ser humano está submetido não o permite desenvolver seus talentos e dons inerentes ao seu status de criatura dotada de inteligência e criatividade, mas ao contrário o escraviza, esse trabalho fere no íntimo os direitos inalienáveis da pessoa e é eticamente questionável.
Enrique Dussel afirma que a vida humana tem dignidade sagrada porque é dom de Deus. E que o valor de uso do objeto produzido é vida humana objetivada.[16] Se observarmos nosso contexto sócio-econômico poderemos perceber que há na relação trabalho e economia uma perigosa inversão, onde o ser humano está na periferia e marginalizado e no centro predomina o capital. A vida, em certo sentido, tornou-se mercadoria em vista do lucro. Mas eticamente o valor do trabalho é seu produto e o trabalhador necessita de uma remuneração que seja equivalente ao tempo que ele alienou na elaboração do objeto.[17] O que assistimos atualmente é o contrário, a alienação do sujeito do trabalho diante do objeto de sua produção. Karl Marx já questionava tal situação quando apontava para perversidade que o capitalismo impunha ao trabalhador.[18]
Eticamente a autonomia dos poderes econômico-especulativos da produção capitalista não pode ser atingida mediante a supressão do ser humano, como também não pode feri-los em seus valores morais, culturais e etc. Contra o risco de esvaziar o papel e a figura da pessoa dentro da relação econômico- produtiva, lembra o Papa João Paulo II que quando se fala da antinomia entre trabalho e capital não se trata, como é evidente, apenas de conceitos abstratos e de ‘forças anônimas’ que agem na produção econômica. Por detrás de um e de outro conceito, há homens vivos e concretos.[19]
A atividade econômica é uma das tarefas humanas, e como tal, autoconsciente, livre e responsável. Assim a economia deve ser entendida como realidade importante não em si mesma e por si mesma, mas para o bem de todos os homens. Nisto a economia apresenta-se em dupla vertente como atividade e como ciência. Para Marciano Vidal, na atividade econômica há uma dimensão social pela qual, através de uma série de fatores, os bens econômicos são produzidos, repartidos, trocados e consumidos. [20]
Marciano Vidal enfatiza que “Tão importante é o papel da Economia na sua dupla vertente de atividade e de ciência, que constitui na sociedade atual o núcleo básico das relações humanas. (...) as justiças e as injustiças atuais se situam predominantemente nas relações econômico-tecnológicas.”[21] Sabemos que a Economia possui sua autonomia, mas isto não deve levá-la a fechar-se no seu mundo econômico-científico. Por isso urge um intercâmbio dos saberes que garanta a autonomia da ciência econômica e possibilite o desenvolvimento integral do ser humano.[22]
Passando por essa breve abordagem da intrínseca implicação entre trabalho e economia já podemos entrever que economia e antropologia se articulam num mesmo campo de ação, e que uma economia sem uma ética e uma a moral centrada na dignidade fundamental do ser humano pode gerar sérias dificuldades para a própria realização do ser humano como ser de abertura ao outro e ao transcendente.

IV. TRABALHO E ECONOMIA: ASPECTO SOCIOLÓGICO.

O que vamos expor nesta terceira parte são os aspectos sociológicos do binômio trabalho e economia, buscando luzes que possam colaborar na construção de uma ordem sócio-econômica equilibrada. Para analisar esta questão faz-se mister um remontar histórico, mesmo que superficial, das transformações ocorridas no sistema capitalista e seus impactos sobre o binômio em questão.
Os acontecimentos ocorridos ao longo das últimas décadas ocasionaram significativas mudanças tanto no campo econômico como social, que por sua vez, têm influências diretas na relação trabalho e economia. Entre essas diversas mudanças podemos destacar o advento da sociedade pós-indusrial, o conseqüente esgotamento da economia fordista, a globalização, o avanço das telecomunicações, o capital flexível e o florescimento do chamado terceiro setor (o setor serviços). [23]
As alterações e crises pelas quais a modernidade iluminista passou afetou também a relação entre trabalho e economia. O nascimento da sociedade pós-industrial que punha a criatividade e não a força de trabalho como centro motor do capital, contribuiu para o enfraquecimento do regime fordista, gerando uma crise profunda na oferta de vagas e tipos de trabalho. Nesta sociedade pós-industrial o trabalho perdeu seu lugar de sociabilidade e passou à marginalidade. Ele deixou de ser um fator constitutivo da relação do indivíduo no mundo e marca de sua dignidade natural para se tornar mercadoria.[24] Desta forma o trabalho perdeu seu lugar de vocação, missão e colaboração humana na obra de Deus, configurando-se apenas como meio de suprir as necessidades.
O Papa João Paulo II na Laborem Exercens já apontava para essa problemática quando falava do conflito que se desenvolveu no processo de industrialização no mundo e a dicotomia criada entre capital e trabalho no processo econômico.[25] Segundo a carta encíclica, o problema inicia-se quando os operários colocavam sua força de trabalho à disposição dos padrões, e estes, guiados pelo princípio do maior lucros, não garantiam as condições dignas aos trabalhadores.[26] O Papa João XXIII nesta mesma linha de pensamento já tinha afirmado que o direito ao trabalho comporta uma “exigência de poder a pessoa trabalhar em condições tais que não se minem as forças físicas nem se lese a sua integridade moral...” [27]
A relação entre trabalho e economia agrava-se mais ainda pelo surgimento da “globalização das relações econômicas” que pode ser entendida como a internacionalização das economias pela interconexão dos mercados financeiros. Essa globalização das economias criou um novo paradigma de produção industrial chamado automação flexível[28], possibilitou principalmente pela revolução tecnológica, a transformou da ciência em força de produção e agente de acumulação de capital. A ciência nesta nova conjuntura torna-se a primeira força produtiva e conseqüentemente provocou uma reestruturação do mercado de trabalho.
Esse novo paradigma de produção exige uma nova forma de organização da produção e do trabalho. Enquanto antes se possuía a produção centrada em determinados setores industriais, dominados por monopólios, que empregavam grande massa de mão-de-obra, e que de certa forma, eram controlados por meio de políticas ficais e sociais (fala-se aqui do regime fordista), hoje, o que encontramos é terceirização do trabalho, com o uso cada menor da mão de obra não-qualificada. Também em conseqüência desta conjuntura atual proliferam-se os trabalhos informais que não possui garantias trabalhistas ao empregado. Agora com essa nova conjuntura o processo produtivo concentra sua força não mais na massa de operários, e sim na técnica e na especialização do empregado.[29]
Os operários que possuem trabalho fixo ou de tempo integral estão cada vez mais escasso. Por outro lado, a exigência da tecnologia obriga o trabalhador a adquiri uma qualificação bem mais exigente do que aquela do sistema de produção anterior, onde cada operário fazia apenas um único serviço, sem necessitar de altas qualificações. O trabalhador atual para ingressar no mercado de trabalho precisa especializar-se e conhecer o processo tecnológico. Isso já cria um enorme problema, pois exige um nível escolar bem mais elevado, pondo à margem centenas de seres humanos fora do mundo do trabalho. O trabalhador de hoje tem que ser polivalente e qualificado; com um certo grau de autonomia e flexibilidade nas tarefas exercidas.[30]
Uma tendência deste tempo atual é diminuição do número de trabalhadores de tempo integral e o surgimento dos empregos temporários. Uma pesquisa feita pelo Jornal O Globo no dia 28 de maio de 2008, mostrou que o tempo que um trabalhador permanece no emprego no Brasil é inferior a cinco anos. Isso é reflexo da tensão e do desequilíbrio entre o trabalho e o modelo econômico capitalista atual.
Diante desse quadro exposto acima é possível criar um debate sobre a centralidade do ser humano em relação ao binômio trabalho e economia que contribua para construir um sistema econômico-social? Penso que sim.
As transformações recentes fizeram expandir a produção com uma exigência sempre menor da mão-de-obra e do tempo de trabalho. Daí que o emprego estável tornou-se privilégio de poucos. Hoje para muitas “populações ativamente produtivas” o trabalho define o lugar social. Em muitos países boa parte da população economicamente ativa vive à margem da civilização do trabalho. Numa sociedade de consumo, para boa parte dos trabalhadores perder o emprego significa perder a motivação que dá sentido a vida.
Ao que nos parece, o trabalho perdeu sua centralidade no campo econômico-social por falta de uma orientação ética dos meios de produção e acumulação. A concepção do trabalho, como direito e dever natural de todos, perdeu seu valor ético, tanto pela desvalorização das representações religiosas e seculares, como pelo descaso à vida e à natureza. O hedonismo e o desejo de consumo exagerado também são fatores que contribuíram na desvalorização do trabalho frente ao capital.[31]
Contudo, deve-se perguntar qual é mesmo a função do trabalho na vida do ser humano? O homem como um devir é um ser em processo, é um projeto infinito[32] e o trabalho é precisamente a atividade humana que o possibilita construir sua identidade na criatividade de recria o mundo pelo seu trabalho. O homem não é assim algo pronto e acabado, ele é o ser da “práxis”[33] e a partir da atividade de trabalhar no mundo ele transcende as coisas e eleva-se como ser “espiritual”. Quando o trabalho não mais realiza o homem como ser social, como pessoa aberta ao absoluto já não é mais ação humana. Assim o fim do trabalho não é o capital e o acúmulo, mas a felicidade e a transcendência do homem.
O objetivo de toda atividade humana é transparecer na ação de transformar o mundo a presença do criador. Isso significa dizer que a ação econômica é lícita quando estimula as potencialidades humanas tanto físicas como espirituais. Daí afirma o catecismo da Igreja Católica que “o trabalho pode ser um meio de santificação e uma animação das realidades terrestres no Espírito de Cristo.”[34]
Portanto, a economia não é a totalidade do homem, ele é também ser cultural, religioso, social, político e etc. O ser humano, na verdade, é um nó de relações voltado para todos os lados, voltado para os homens e para Deus.[35] Para Manfredo Araújo de Oliveira, não se pode estabelecer, portanto, um projeto econômico válido e, conseqüentemente, um projeto de sociedade, sem que se estabeleça com clareza, que a questão fundante é a configuração ética das relações sociais, de tal modo que se garanta a reprodução social da vida de todos os seres humanos numa perspectiva lógica da inclusão contra a lógica da exclusão.[36] Tal projeto econômico includente somente será possível quando os direitos elementares da pessoa e o respeito à natureza forem tratados com mais seriedade. Somente no reconhecimento dos princípios éticas em defesa da vida – que estão para além do econômico – se pode falar de uma relação justa do binômio economia e trabalho.


V. Conclusão

Nossa reflexão buscou tratar da relação entre “trabalho e economia” fazendo perceber que não pode haver uma separação entre o respeito a dignidade humana e processo de produção e acúmulo de bens. O trabalho produz a economia, e esta nada mais é do que o resultado (produto) das atividades humanas e do exercício do trabalho humano. Uma economia que não tenha o ser humano no centro de suas preocupações jamais responderá eficazmente aos grandes problemas da sociedade e dificilmente construirá um mundo de paz. A pessoa humana é a única protagonista, da vida econômica e social, os elementos da técnica, da ciência e outros são sempre meios e nunca fim. Como já tentamos demonstrar em todo o conteúdo explanado até aqui o homem é um ser pluridimensional e sendo assim, “trabalho e economia” dizem respeito a dimensões deste ser, mas nunca esgotam seu ser.
Numa justa compreensão do binômio trabalho e economia, em seus aspectos bíblico-teológicos, ficou evidente que à luz da Palavra de Deus, o trabalho possuem uma dimensão sacra, como dom de Deus, e que o econômico só se justifica à medida que oferece condições à realização do ser humana. No que tange aos aspectos antropológicos, buscou-se delinear a centralidade da pessoa e do trabalho como atividade humana, cujo primado encontra-se na dignidade fundamental da pessoa dotada de direito e deveres. Somente à luz deste primado o trabalho tem garantido seu papel na socialização do ser humano.

Bibliografia:

ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de, Algumas questões sobre globalização e modernidade, disponível em www.centrodeformaçãopoliticadomheldercamara.com.br
BOFF, L. Tempo de Transcendência: o ser humano como um projeto infinito, Sextante, RJ, 2000, p 35-39
BOFF L. A Águia e a Galinha: uma metáfora da condição humana, Vozes, Petrópolis, 1998, p 99-101
Catecismo da Igreja Católica
Constituição Brasileira de 1988
Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) em 10/12/1948
DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis, 1987
GAUDIUM ET SPES
João XXIII, Papa, Pacem in Terris
PAULO VI, Papa, Carta Encíclica Populorum Progressio
PAULO VI Laborem Exercens
PAULO VI Centesimus Annus
MARX, K. E ENGELS Manifesto do Partido Comunista, II parte – Burguesia e proletário, Coleção Os Pensadores, São Paulo,Nova Cultural, 1993.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, São Paulo, Paulinas, 2001, pp. 215-216.
VIDAL, Marciano. Dicionário de Moral. São Paulo, Paulinas, (s.d.), pp.189-190

[1] Catecismo da Igreja Católica, n. 2427.
[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 2427.
[3] João XXIII, Papa, Pacem in Terris, n. 18.
[4] A expressão “submeter a terra” deve ser lida no seu contexto bíblico e não econômica capitalista. O termo não é propriamente uma ação de apropriação da terra como propriedade privada em vista do acúmulo, mas “o submeter a terra” está ligado ao cuidado, pois o escopo é de ser co-criador, continuador na obra que foi criada em processo de acabamento. Assim, tais palavras postas logo no princípio da Bíblia, jamais querem revelar um domínio como ato de dissecar, expurgar, exaurir todos as riquezas, etc. Cf. BOFF, L. Saber cuidar;Cf. Laborem Exercens, n. 4; Cf. Gn 1, 27-28.

[5] João XXIII, Papa, Pacem in Terris, n. 19
[6] PAULO VI, Papa, Carta Encíclica Populorum Progressio, n. 15.
[7] Cf. Centesimus Annus, n. 31.
[8] PAULO II, Papa João, Laborem Exercens, n. 6.
[9] PAULO II, Papa João Laborem Exercens, n. 16.

[10] Cf. GAUDIUM ET SPES, n. 63.
[11] JOÃO XXIII, Papa, Pacem in Terris, n. 9.
[12] PAULO II, Papa JOÃO. Laborem Exercens, n. 3
[13] PAULO II, Op. cit, n. 5
[14] PAULO II, Op. cit, n. 12
[15] Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) em 10/12/1948, Art. 23; cf. também Constituição Brasileira de 1988 Art. 5º, XIII – “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
[16] DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis, 1987. p 131
[17] Cf. DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis, Vozes, 1987. pp. 132-133
[18] Cf. MARX, K. E ENGELS Manifesto do Partido Comunista, II parte – Burguesia e proletário, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1993.
[19] Cf. PAULO II, Papa JOÃO. Laborem Exercens, n. 14
[20] Cf. VIDAL, Marciano. Dicionário de Moral. São Paulo, Paulinas, (s.d.), pp.189-190
[21] VIDAL, Marciano. Dicionário de Moral. Sao Paulo, Paulinas, (s.d.) p.189
[22] Cf. VIDAL, Op. cit 190.
[23] Cf. ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de, Algumas questões sobre globalização e modernidade, disponível em www.centrodeformaçãopoliticadomheldercamara.com.br
[24] Cf. JOÃO XXIII, Papa, Pacem in Terris, n. 20.
[25] PAULO II, Papa JOÃO. Laborem Exercens, n. 11.
[26] Ibidem
[27] JOÃO XXIII, Papa, Pacem in Terris, n. 19.
[28] A automação flexível é quando há possibilidade de mudar rapidamente o produto sem mudança de equipamentos, a fim de atender as novas exigências de mercado no sentido de responder às mudanças de hábito dos consumidores, que se torna possível graça a vinculação dos computadores às maquinas. Cf: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, São Paulo, Paulinas, 2001, pp. 215-216.
[29] Cf. ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de, Algumas questões sobre globalização e modernidade, www.centrodeformaçãopoliticadomheldercamara.com.br

[30] Cf: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, São Paulo, Paulinas, 2001, p. 219
[31] Idem. 240 (o trabalhador tem uma idade de uso para o capital, quanto mais velho menor é seu valor como mercadoria.)
[32] L. Boff. Tempo de Transcendência: o ser humano como um projeto infinito, Sextante, RJ, 2000, p 35-39
[33] Esta “práxis” é a experiência que o homem faz de ser um ser entregue a si mesmo. Ele é um ser que se descobre na ação criativa e decide sobre sua vida que constitui o objeto fundante de suas ações no mundo (Cf: Manfredo Araújo de Oliveira. Desafios Éticos da Globalização, Paulinas, p 242-243.)
[34] Catecismo da Igreja Católica, n. 2428
[35] L. Boff. A Águia e a Galinha: uma metáfora da condição humana, Vozes, Petrópolis, 1998, p 99-101
[36] Manfredo Araújo de Oliveira. Desafios Éticos da Globalização, Paulinas, p 249

São Vicente de Paulo e o amor que se faz prática.


Na era da comunicação e da novidade, onde tudo é descartável e o passado visto com desconfiança, São Vicente contrasta, pois a mensagem deste tão importante santo da caridade tem sempre algo a nos comunicar. Mas por que a Vida de São Vicente, que viveu a quase 350 anos atrás, tem ainda hoje algo de relevante? Qual o segredo dessa jovialidade e atualidade das palavras de Vicente? Respondendo simploriamente podemos afirmar que isso é fruto da unidade existencial entre ser e presença, entre vida e pensamento, entre ação e reflexão.
As grandíssimas figuras da humanidade não são lembradas apenas pela que disseram, nem como disseram, mas sobremaneira pela unidade entre o falar e fazer, ou melhor, entre o fazer e o falar. A virtude primeira de um santo não é tanto o que ele diz, e sim o que ele faz de sua vida. A inapetência existente hoje entre discurso e prática, entre vida pública e ação privada criam uma lacuna entre o ideal da santidade autêntica e santidade “jurídica” ou “canônica.” Para ser santo divinamente falando não basta passar pelos tramites legais da Santa Sé. É mister avaliar com seriedade os critérios evangélicos do testemunho e autenticidade de vida: “Se alguém disser : ‘amo a Deus’, mas, entretanto odeia o seu irmão, é um mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus a quem não vê. E este é o mandamento que dele recebemos: aquele que ama a Deus ame também o seu irmão” (cf. 1Jo 4,20).
É impressionante o texto de primeira João, quando nos convida a viver antes de dizer. Afirmar é fácil, realizar o que se diz é mais complicado. Por isso São Vicente dizia: “não me basta amar a Deus se aos pobres não os amo”. Não me basta ir a Igreja e deixar o pobre, o doente, a viúva ou o órfão sem assistência. Isso é uma ofensa a Deus, pois assim diz o Senhor: “Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto do sangue dos bois, carneiros e cabritos. Quando vocês vêm à minha presença e pisam meus átrios, quem exige algo das mãos de vocês? Parem de trazer essas oferendas inúteis. O incenso é coisa nojenta para mim... não suporto injustiça junto com solenidade.” [1]
Deus não quer sacrifícios, ele deseja ser amado e respeitado no mundo e através das pessoas criadas à sua imagem. Prova de amor a Deus é amor seu irmão. Neste sentido o exemplo de Vicente de Paulo é atualíssimo, pois ele foi um fiel amante do Senhor amando seus irmãos e senhores, a saber, os pobres. São Vicente amava Deus nos pobres, e amando os pobres sentia que amava a Deus mesmo: “Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram.”[2]
Deus é amor[3] e é próprio do amor a dinamicidade da práxis no amor. São Vicente em seus escritos estava sempre consciente deste dado: só com amor se move a vida, e em nome desse amor o cristão tem que colocar todas as suas energias para bem vivê-lo. Amor para São Vicente não é sentimentalismo ou piedade descomprometida. Amor é atitude, é realizar coisas, transformar realidade. Dizia Vicente: “Amemos a Deus, meus irmãos, amemos a Deus, mas que seja à custa de nossos braços, que seja com o suor de nossos rostos. Pois muitas vezes os atos de amor a Deus, de complacência, de benevolência, e outros semelhantes afetos e práticas interiores do coração amante, ainda que muito bons e desejáveis, resultam, entretanto, muito suspeitos, quando não se chega à prática do amor efetivo. (...) Mostram-se satisfeitos por sua imaginação fértil, contentes com os doces colóquios que têm com Deus na oração; falam quase como anjos; mas logo quando se trata de trabalhar por Deus, de sofrer, de se mortificar, de instruir os pobres, de ir buscar a ovelha perdida, (...), aí tudo vem abaixo e falham seus ânimos.”[4]
É imprescindível salientar que a atualidade de São Vicente estar ligado ao seu modo sereno e coerente de unir palavra e prática; sua teologia é uma práxis. Pois o amor não é aquilo que se sente pelo outro sem fazer nada por ele; amar é cuidar, proteger e amparar. É por isso que o amor não é apenas afetivo, mas também efetivo. Amor que se configura apenas em afeição não pode ser um amor cristão. Um vicentino não pode amar apenas afetivamente é necessário lançar-se no vôo vicentino do amor efetivo que transforma as estruturas e abre caminhos de vida e esperança. Para Vicente de Paulo “(...) o amor se divide em afetivo e efetivo. O amor afetivo é certa efusão do amante no amado, ou bem uma complacência e carinho que se tem pela coisa que se ama, como o pai a seu filho, etc. E o amor efetivo consiste em fazer as coisas que a pessoa amada manda ou deseja (...).” [5] Em outras palavra o nécta, a essência e o âmago do amor é a práxis, isto é, o amor afetivo posto em ação.
São Vivente define: “O amor cristão é um amor pelo qual se amam uns aos outros por Deus, em Deus e segundo Deus; é um amor que faz nos amarmos mutuamente pelo mesmo fim por que Deus ama os homens, para fazê-los santos neste mundo e bem-aventurados no outro (...).” [6] Se o amor está na raiz da vida cristã e também vicentina, então a busca pelos novos areópagos passa necessariamente pela trilha do amor.
Penso que para encontrar os novos espaços de reflexão e assistência aos pobres ou para encontrar o lugar teológico dos pobres é imprescindível que, antes de qualquer coisa voltemo-nos nosso olhar ao amor evangélico, tão caro a São Vicente. Os novos areópagos somente serão internalizados por meio de um retorno autêntico às fontes dos Evangelhos e Escrito de São Vicente. Com muita clareza acreditamos que os novos areópagos escondem-se no amor gratuito e livre. Porque somente alguém sem interesses próprios pode penetrar no centro do amor e unir: fé e vida, pensamento e ação, teoria e vivência, existencial e eterno, divino e humano; Deus e homem.


Pe. Fantico Nonato Silva Borges, CM

[1] Isaías 1, 11-13
[2] Mateus 25, 40
[3] 1Jo 1, 4; Bonto XVI, Deus caritas est, Paulinas 2007, n. 01-03
[4] Coste, Pierre, Escritos de São Vicente de Paulo, XI, 733.
[5] Coste, Pierre, Escritos de São Vicente de Paulo, XI, 736.
[6] Idem, XI, 769

Quais as razões da diversidade das expressões da fé encontradas no Novo Testamento?


Segundo William Henn[1], a diversidade das expressões que encontramos no Novo Testamento (NT) está ligada à multiplicidade de contextos culturais e religiosos no qual se inseriu o cristianismo no inicio de sua formação. Por isso as expressões de fé presentes na Igreja primitiva levam-nos a crer que o cristianismo sofreu varias influências culturais na base de seu credo. Todavia, isso não tira a autoridade e a originalidade da fé cristã.
É importante lembrar, nos alerta William Henn, que os evangelhos não foram escritos de forma independentes, mas que cada um carrega traços e contribuições daquelas comunidades que abraçaram a pregação apostólica. Também é necessário não esquecer que o evangelista antes de ser historiador é um fiel que fez uma experiência radical de Jesus e a interpreta à luz da fé. Portanto, o evangelista não é historiador, que narra um fato histórico, mas um fiel que forma sua personalidade a partir da experiência do encontro com Jesus de Nazaré.
O nosso autor aponta duas razões básicas para essa diversidade das expressões da fé no NT. Primeiro o fato de que o cristianismo recebeu muita influência das culturas e tradições do povo que aderiam à pregação. A segunda razão consistia no fato de que os primeiros cristãos já vinham de uma experiência de fé religiosa (judaísmo, paganismo com suas diversas experiências religiosas). Portanto, as tradições culturais e as diversas religiões estão presentes na base do cristianismo primitivo e contribuíram para essas variações de expressões de fé no NT – que não foram negativas, mas ao contrário, colaboraram para que diversas dimensões da nossa fé se tornassem visíveis. A ausência desta diversidade, segundo William Henn, teria empobrecido a cristologia, a eclesiologia, em fim a mensagem cristã.
Essa diversidade pode ser perceptível no NT principalmente nos diferentes tipos de literatura: os Evangelhos e as Cartas. Cada um dos escritos aborda diferente assunto e evento, cada um apontando detalhes distintos e pontos de vistas diversos; por exemplo: as narrativas da Paixão e da Ressurreição nos Sinóticos em comparação ao Quarto Evangelho trazem particularidades bem significativas a cada comunidade. Para William Henn isso é possível porque a pregação apostólica não anunciava um dogma ou uma idéia, mas uma pessoa: Jesus de Nazaré, com sua história concreta. [2]
Na própria comunidade, entre as próprias lideranças se pode notar como as tradições culturais marcaram a fé primitiva. A luta de Paulo em Jerusalém para libertar os pagãos da obrigatoriedade da lei da circuncisão judaica (cf. At 15, 6-21); o conflito com Paulo, Pedro e Barnabé narrado em Gálatas 2, 11-14; a contenda verificada em Atos 15, 36-41, tendo como desfecho a separação de Paulo e Barnabé. Tudo isso demonstra que havia conflitos, fruto de posturas advindas de tradições culturais. Todavia, essas diferenças não atingiam o conteúdo da pregação; existia uma unidade que permeava tudo: a centralidade da pessoa histórica de Jesus de Nazaré no seu evento pascal: vida, morte e ressurreição.

2. É possível explicar a unidade da fé cristã no Novo Testamento somente a partir da história?
Como na comunidade existia uma diversidade de tradições culturais, onde a religião cristã foi inserindo-se, e, por conseguinte recebeu muita influência destas mesmas culturas, penso ser muito difícil conseguir perceber a unidade da fé cristã utilizando apenas o instrumental histórico.
A história é importante para se conhecer e corroborar o depósito da fé cristã, mas ela sozinha não explica a unidade da fé cristã. Segundo William Henn, mesmo o cânon não é base para explicar a unidade, ao contrário ele explicita a diversidade, uma vez que o cânon vem para garantir que essa diversidade não gere divisão. Portanto o cânon revela a multiplicidade das confissões.
Para conseguir a unidade da fé é necessário manter alguma ordem e estrutura. No centro desta ordem está Jesus de Nazaré. Cristo é o centro do querigma e por isso sinal visível da unidade da fé cristã. Na comunidade tudo converge ao centro que é Jesus. Daí que a unidade da fé não se explica somente com a história, mas, sobretudo a partir da interpretação teológica do evento histórico Jesus de Nazaré. É a partir da interpretação teológica que os dados culturais vão cedendo lugar a ortodoxia da fé.
O Evangelho não é fruto de um pensamento puramente histórico. Ele é conseqüência da experiência do encontro com a Palavra de Deus revelada em Jesus. Assim a unidade da fé cristã está na partilha e no acolhimento por parte de que ouve e aceita a experiência de fé. Essa partilha (pregação, querigma) é aceita e assim cria-se a unidade da Igreja. As pessoas que aceitam a pregação recebem não uma idéia, mas a experiência histórica de vida, morte e ressurreição de Jesus: “o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e o que nossas mãos apalparam: - falamos da Palavra, que é a vida.” (1Jo 1,1) Ou como falava Paulo: “nós, porém, anunciamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos...” (1 Cor 1,23)
A aceitação da experiência de fé faz chegar à unidade da fé. Pela pregação (querigma) e acolhnimento, como resposta da experiência de fé pessoal e comunitária, a Igreja vai criando a unidade. É neste acolhimento da pregação que a diversidade não constitui uma fragmentação, pois todos recebem a mesma mensagem de vida. Essas comunidades com suas tradições vão aceitando e aprofundando a fé cristã dando dinamismo e vida a Igreja. Assim a diferença gera dinamicidade da fé e a enriquece.
O autor ainda levanta alguns pontos onde se poderão averiguar os elementos que contribuíram à unidade da fé cristã. Segundo William Henn, o Querigma comum das comunidades era um forte sinal da unidade, pois mesmo com os diversos contextos e tradições culturais a centralidade do querigma era Cristo, como Deus e Senhor. Cada tradição e/ou comunidade a partir deste “núcleo duro” da pregação fazia sua leitura do evento histórico de Jesus, de modo mais expressivo para seu contexto cultural, sem perder o centro da fé cristã.
Um segundo elemento de verificação da unidade da fé é o diálogo. Pelo diálogo a comunidade produzia unidade, pois fazia a mensagem cristã dialogar com outras tradições sem perder seu conteúdo essencial: Cristo. Esse diálogo era garantido pela presença do Espírito Santo que gerava a unidade. Desta forma o diálogo ajuda a crescer na fé, pois colocava a pregação cristã em contato com outras realidades, levando-a a desenvolver elementos que poderiam ficar obscurecidos caso ela não se defrontasse com diferentes realidades.
Um terceiro elemento que se pode apontar para a unidade da fé cristã é a presença de diversos carismas e ministérios provindos de um único Espírito no seio da comunidade. A diversidade de carismas e ministérios marca a ação do Espírito, que distribui os dons e ministérios livremente como Ele quer para edificação da Igreja. A diversidade de carismas e ministérios enriquece e favorece a unidade, uma vez que cria diálogo e colaboração.
Uma outra coisa que ajuda a verificar a unidade da fé são os textos escritos. O Novo Testamento é um agrupamento de diferentes tradições (fontes) unidas entorno do mesmo e único evento: Jesus de Nazaré. A base dos textos do NT, sobretudo dos evangelhos, sãos as tradições comuns ( Fonte “Q”) , extraídas das comunidades primitivas. Assim os textos do NT, mesmo com suas variações, revelam uma forte unidade na sua redação: todos falam da vida de Jesus e da experiência do encontro com Cristo.
Por fim os lideres das comunidades são também sinais que podem ajudar à explicação da unidade da fé cristã. Ao redor destes lideres – que vivia sua autoridade através dos dons e ministérios do Espírito – muitos conflitos e possíveis contendas eram superadas em vista da unidade. Para William Henn, os escritos do NT possuíam direta ligação com essas lideres (apóstolos, profetas, mestres, confessores.). Através deles a comunidade encontrou um forte sinal de unidade. A reunião de Jerusalém (concílio de Jerusalém), para resolver o conflito sobre a obrigatoriedade da circuncisão para os não-judeus (cf. At 15, 6-21), é um exemplo claro da autoridade desses lideres das comunidades.
Desta forma fica claro que somente com a história é impossível explicar a unidade da fé cristã. Esses cinco elementos: querigma comum, o diálogo com as diferentes culturas, a presença dos carismas e ministérios provenientes do mesmo Espírito, os textos escritos do NT sobre a orientação e auxílio dos lideres das comunidades formam os elementos que apontam à unidade da fé cristã. É lógico que todos esses elementos sobre à luz da interpretação teológica do evento histórico-salvífico: Jesus de Nazaré.
[1] Esse artigo tenta responder a partir do texto de HEN, William, as perguntas propostas pelo Prof. Dr. Mario de França Miranda. Cf. HEN, William One Faith, Biblical and Patristic Contributions Toward Understanding Unity in Faith, Paulist Press, New York/ Mahwah, N.J., pp 60-85.
[2] Cf. HEN, William, One Faith, Biblical and Patristic Contributions Toward Understanding Unity in Faith, Paulist Press, New York/ Mahwah, N.J.

Resenha do texto: Crer no mundo de hoje de Josef Ratzinger: Introdução ao Cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico.

A dúvida e a fé:
O autor tenta demonstrar que a problemática em relação a fé no momento atual é muito mais desafiantes que uma simples mudança de formas e linguagem. Para Ratzinger a teologia precisar ir mais funda na questão do diálogo com a modernidade. A realidade da teologia é que o teólogo não consegue com seu discurso atual atingir o ponto nevrálgico; porque muitas mudanças na teologia estão na periferia da problemática. Não é mudando somente a linguagem que solucionaremos a questão da fé na modernidade. Atitudes como mudança de linguagem, esquemas e estruturas são paliativas e tornam a reflexão às vezes ingênua.
Ratzinger propõe uma reviravolta na atitude da teologia frente ao mundo moderno. A primeira coisa é assumir uma postura autocrítica. Quem, portanto, se dispor com toda honestidade a prestar contas da fé cristã a si mesmo e aos outros terá primeiramente que aprender que ele não é alguém acima dos outros e sim que vive inserido no mundo como todo ser humano; que vive dentro dos conflitos humanos, mergulhado nas teias da complexidade da vida. Mesmo os mais santos são antes de tudo, pessoas que experimentaram as tensões das dúvidas e das incertezas próprias da vida (Ratzinger dá como exemplo os testamentos espirituais de Teresinha de Jesus).
Para Ratzinger a questão atual não se trata apenas de aspectos da fé, ou de incompreensões dogmáticas, ou ainda de elementos deste ou daquele sacramento e rito, mas a questão é sobre a fé mesma. A questão é sobre a validade e existência da fé. Ainda é pertinente o discurso sobre a fé? A fé é algo que merece ser escutada? Portanto, a problemática é central ao cristianismo, é uma questão de sobrevivência. A fé encontra hoje apoio para exigir ser escutada? Eis ai a problemática de fundo.
A dúvida e a fé entram em relação neste ponto, pois para Ratzinger a fé encontra espaço na trama da vida humana, pois ela chega como uma entrega e aceitação daquilo que a vida não consegue responder a si mesma: a certeza de tudo. A dúvida faz parte da vida porque a vida humana é limitada no seu contexto espacial e por mais que o homem avance nas descobertas a certeza nunca será absoluta. A dúvida estará presente sempre até o fim. Assim também é a fé, ela não traz a certeza absoluta ao homem. Quem quiser escapar das incertezas da fé, quem quiser provar a fé, ou como diz o autor pô-la sobre a mesa nunca conseguirá, e caso o faça porá sobre a mesa não a fé, mas algo de falso. Na vida humana sempre nos acompanhará um “talvez” teológico. Daí afirma Ratzinger que dizer “creio” é muito mais que um simples pronunciar axiomático teológico conclusivo. Dizer “creio” é acreditar, sentir, compreender, entender e firmar os pés em Deus. Para Ratzinger, da dúvida nem o incrédulo nem o crente estão isentos. O “talvez” é a grande tentação da qual não se consegue fugir e na qual se experimenta a irrecusabilidade da fé dentro da própria recusa.

O salto da fé- tentativa provisória de definir a essência da fé.

O que é a fé? Essa é a pergunta que Ratzinger tentará responder aos modernos. Essa questão só pode ser formulada da seguinte maneira: o que significa na boca de um cristão dizer creio, nas condições existenciais atuais como um todo na modernidade? A fé no AT significava a um sim a lei; ela era uma ordem de vida. No tempo dos Romanos a fé era observância de determinadas formas e praxes rituais que não tinha muita necessidade de uma relação com o sobrenatural. Na Idade Antiga e Media da era cristã havia uma concentração de fieis, mas a vivência da fé consciente era algo bem reduzido. Havia a fé dos teólogos e a massa cristã alheia ao conteúdo da fé enquanto tal.
A fé, na verdade, sempre esteve presente na vida das pessoas sem que perguntassem sobre ela. Dizer a palavra creio traz muitas conseqüências que nem sempre nos damos conta. A fé mostra que o ser humano não entende ser aquilo que ele pode ver, ouvir e tocar a totalidade de tudo o que lhe diz respeito, que ele não considera o espaço de seu mundo delimitado para aquilo que ele pode ver e tocar, mas que está à procura de uma segunda forma de acesso à realidade, e a essa forma ele chama de fé, encontrando nela até a abertura decisiva de sua visão do mundo simplesmente. A palavrinha creio encerra uma opção fundamental diante da realidade como tal; ela não é uma constatação disso ou daquilo, e sim uma forma básica de se relacionar com o ser, com a existência, com o próprio e com o total da realidade. Daí a atitude básica que devemos ter é a conversão. A fé é um salto sobre o abismo infinito do mundo tangível e visível, que nos puxa para o limitado e transitório; a fé é, portanto, a virada que passa através desse talvez teológico, que pressupõe aceitar o risco de firmar o pé na esperança do invisível e absoluto que possibilita toda realidade visível.

O dilema da fé no mundo de hoje.

O paradoxo fundamental da fé no mundo de hoje consiste na idéia que se firmou de tradição como uma recuo ao passado. A fé que vive da tradição é rejeitada como algo passado e superado. O homem moderno pensa no futuro e toda a sua vida está em função do progresso e do desenvolvimento. Tudo que faz unir-se ao passado é necessariamente descartável. A tradição e a fé se estão vinculadas não encontram aí espaço para sobreviver. Daqui nasce a proposta intelectualista protestante da desmitologização, ou do pragmatismo católico do aggiornamento. Mas Ratzinger diz que não basta essa mudança para resolver o problema. A fé tem a ver com o eterno e com o progresso do mundo, mas não se resume somente a isso. Deus está no mundo e o mundo revela Deus, mas é preciso superar o positivismo da fé e pragmatismo do fazer o progresso. A fé não pode ser reduzida a um aspecto da vida humana, como quiseram fazer diversas correntes filosóficas (Kant, Hegel, Marx) e teológicas (TdL). A fé não pode ser reduzida àquilo que sentimos e tocamos; ela é mais.

O limite da compreensão moderna da realidade e o lugar da fé.

Há varias formas de relacionar-nos com a realidade: a orientação mágica, a forma metafísica e atualmente a forma científica. Para Ratzinger o modo como o ser humano se relaciona com a realidade podem ser identificados em duas fases.
· O historicismo: preparado por Descartes recebeu sua forma definitiva por meio de Kant, porém foi com Vico que o historicismo deu grandes avanços. Na Escalástica a equação verus est ens: o ente é a verdade foi composta por Vico do seguinte modo verum quia factum, ou seja, só podemos conhecer como verdadeiro aquilo que foi feito por nós mesmo. O ser humano é agora aquele que cria. Verdade é fazer e não mais acolher a verdade do ser criador que pensa e cria com seu pensamento. É o ser humano quem fazendo, dá sentido a tudo que faz. Em Vico já se vislumbra o nascimento da ciência com seu método positivista da experimentação.
· A segunda fase é aquela do pensamento técnico: agora não é mais verum quia factum e sim verum quia faciendum, ou seja, a verdade que interessa não está mais ligada nem ao ser nem a historia dos seus atos passados, mas sim a verdade é a transformação do mundo, que consiste em dar-lhe forma. O factum foi sendo progressivamente substituído pelo domínio do faciendum, ou seja, pelo que é factível e deve ser feito. Por isso foi se confirmando mais tarde a tese que o ser humano somente pode conhecer aquilo que se pode realizar; e quanto mais se realiza mais garantia se tem que se conhecem os meios de fazer e sua técnica. Desta idéia nasce a necessidade da experimentação por meio da repetição. Com isso surge o método científico que resulta da associação entre matemática e a facticidade observada no experimento repetível, como o único portador de certeza confiável.
· Mas qual o lugar da fé: no contexto da faciendum a fé ocupa o lugar de um projeto ou instrumento de transformação do mundo. O plano de transformação social torna-se um modo que a teologia encontrou para se colocar dentro deste quadro teórico. Mas essa não pode ser o lugar específico da fé nesse duplo contexto historicista x cientificista. A fé não faz parte da relação entre o saber e o fazer. O lugar da fé é por excelência o firmar-se e o entender o sentido de tudo. Não constitui um saber pragmático das realidades tangíveis e visíveis, mas sim uma acolher e aceitar a infinita distância entre o inefável e finito. A fé estar no encontro entre o tangível e o intangível, o contingente e o imensurável.

A fé como ato de firmar-se e de entender:


A fé é uma opção fundamental, é um salto sobre o abismo infinito entre o ser visível e invisível. A fé neste sentido não pode ser uma coisa que se encontre e se prove com dados físicos experienciais. Na estrutura do tipo de conhecimento científico só é verdadeiro aquilo que se prova; esse tipo de saber não pode ser utilizado para encontrar a fé. A certeza científica que é sempre um talvez, não pode esgotar a dúvida, pois dentro do conhecimento factível não há caráter absoluto.
O que seria a fé, então? A fé cristã significa conformar, assumir a opção de que o invisível é mais real do que o visível. Ter fé neste sentido significa, então, compreender a nossa existência como resposta à Palavra, ao logos que sustenta e conserva todas as coisas. Por isso a fé é inexoravelmente um firmar-se e entender-se do ser humano, aceitando e confiando a Deus que tudo cria e sustenta com seu logos. Fé é assim o aceitar antes do fazer, sem menosprezar o fazer. A fé é uma atitude de responsabilidade ante o invisível como verdadeiro fundamento do real. Mas para isso é necessário à teologia superar os dois grandes desafios sob a forma de positivismo e fenomenismo da fé. Uma fé que necessite ser provada já não é autêntica e nunca levará a cabo tal missão. A fé é o primado do invisível sob o visível e do receber sob o fazer.


A razão da fé:

Qual a razão da fé? Já vimos que a fé não é um conceito factível. A fé segundo Ratzinger tem sua razão de ser na essência original do mistério. É Deus a razão da fé, e esse Deus tem um rosto e é encontrado na pessoa de Jesus de Nazaré. A razão da fé então é o entendimento não como conhecimento factível e sim sentido último do encontro com esse mistério. O entender no pensar de Ratzinger significa aprender a conceber o fundamento sobre o qual nos firmamos como sentido e como verdade última de toda realidade e que o real não pode dar sentido a si, mas recebe de Deus sua razão de existir. Fé e entendimento não se contradizem e sim estão em concordância e são tão inseparáveis como fé e firmeza.

Creio em ti.


A fé cristã não é fé numa coisa é antes fé numa pessoa. Ela é o encontro com o homem Jesus, e nesse encontrar-se ela experimenta o sentido do mundo como pessoa. Pois Jesus revela ao mundo e ao ser humano o sentido e a verdade da criação. Ele é o ponto de encontro entre Deus criador e a sua obra criada. O sentido do mundo encontra-se assim neste “tu” fundamental que é fundamento e não carece de fundamento, pois é ele quem oferece sentido a tudo.
Mas esse encontro, alerta Ratzinger, não elimina a possibilidade de dúvidas, tentações e incoerências. O fiel experimentará sempre essa escuridão em que o protesto da descrença o envolve como uma prisão lúgubre e intransponível, e em que indiferença do mundo, que continua agindo como se nada tivesse acontecendo, parece reagir apenas como escárnio à sua atitude de esperança. A atitude deve ser aquela da reverência do tremendum: eu creio em ti, Jesus de Nazaré, pois tu és o sentido (logos) do mundo e da minha vida!
Pe. Fantico Borges, CM

Resenha do texto: Crer no mundo de hoje de Josef Ratzinger: Introdução ao Cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico.

A dúvida e a fé:
O autor tenta demonstrar que a problemática em relação a fé no momento atual é muito mais desafiantes que uma simples mudança de formas e linguagem. Para Ratzinger a teologia precisar ir mais funda na questão do diálogo com a modernidade. A realidade da teologia é que o teólogo não consegue com seu discurso atual atingir o ponto nevrálgico; porque muitas mudanças na teologia estão na periferia da problemática. Não é mudando somente a linguagem que solucionaremos a questão da fé na modernidade. Atitudes como mudança de linguagem, esquemas e estruturas são paliativas e tornam a reflexão às vezes ingênua.
Ratzinger propõe uma reviravolta na atitude da teologia frente ao mundo moderno. A primeira coisa é assumir uma postura autocrítica. Quem, portanto, se dispor com toda honestidade a prestar contas da fé cristã a si mesmo e aos outros terá primeiramente que aprender que ele não é alguém acima dos outros e sim que vive inserido no mundo como todo ser humano; que vive dentro dos conflitos humanos, mergulhado nas teias da complexidade da vida. Mesmo os mais santos são antes de tudo, pessoas que experimentaram as tensões das dúvidas e das incertezas próprias da vida (Ratzinger dá como exemplo os testamentos espirituais de Teresinha de Jesus).
Para Ratzinger a questão atual não se trata apenas de aspectos da fé, ou de incompreensões dogmáticas, ou ainda de elementos deste ou daquele sacramento e rito, mas a questão é sobre a fé mesma. A questão é sobre a validade e existência da fé. Ainda é pertinente o discurso sobre a fé? A fé é algo que merece ser escutada? Portanto, a problemática é central ao cristianismo, é uma questão de sobrevivência. A fé encontra hoje apoio para exigir ser escutada? Eis ai a problemática de fundo.
A dúvida e a fé entram em relação neste ponto, pois para Ratzinger a fé encontra espaço na trama da vida humana, pois ela chega como uma entrega e aceitação daquilo que a vida não consegue responder a si mesma: a certeza de tudo. A dúvida faz parte da vida porque a vida humana é limitada no seu contexto espacial e por mais que o homem avance nas descobertas a certeza nunca será absoluta. A dúvida estará presente sempre até o fim. Assim também é a fé, ela não traz a certeza absoluta ao homem. Quem quiser escapar das incertezas da fé, quem quiser provar a fé, ou como diz o autor pô-la sobre a mesa nunca conseguirá, e caso o faça porá sobre a mesa não a fé, mas algo de falso. Na vida humana sempre nos acompanhará um “talvez” teológico. Daí afirma Ratzinger que dizer “creio” é muito mais que um simples pronunciar axiomático teológico conclusivo. Dizer “creio” é acreditar, sentir, compreender, entender e firmar os pés em Deus. Para Ratzinger, da dúvida nem o incrédulo nem o crente estão isentos. O “talvez” é a grande tentação da qual não se consegue fugir e na qual se experimenta a irrecusabilidade da fé dentro da própria recusa.

O salto da fé- tentativa provisória de definir a essência da fé.

O que é a fé? Essa é a pergunta que Ratzinger tentará responder aos modernos. Essa questão só pode ser formulada da seguinte maneira: o que significa na boca de um cristão dizer creio, nas condições existenciais atuais como um todo na modernidade? A fé no AT significava a um sim a lei; ela era uma ordem de vida. No tempo dos Romanos a fé era observância de determinadas formas e praxes rituais que não tinha muita necessidade de uma relação com o sobrenatural. Na Idade Antiga e Media da era cristã havia uma concentração de fieis, mas a vivência da fé consciente era algo bem reduzido. Havia a fé dos teólogos e a massa cristã alheia ao conteúdo da fé enquanto tal.
A fé, na verdade, sempre esteve presente na vida das pessoas sem que perguntassem sobre ela. Dizer a palavra creio traz muitas conseqüências que nem sempre nos damos conta. A fé mostra que o ser humano não entende ser aquilo que ele pode ver, ouvir e tocar a totalidade de tudo o que lhe diz respeito, que ele não considera o espaço de seu mundo delimitado para aquilo que ele pode ver e tocar, mas que está à procura de uma segunda forma de acesso à realidade, e a essa forma ele chama de fé, encontrando nela até a abertura decisiva de sua visão do mundo simplesmente. A palavrinha creio encerra uma opção fundamental diante da realidade como tal; ela não é uma constatação disso ou daquilo, e sim uma forma básica de se relacionar com o ser, com a existência, com o próprio e com o total da realidade. Daí a atitude básica que devemos ter é a conversão. A fé é um salto sobre o abismo infinito do mundo tangível e visível, que nos puxa para o limitado e transitório; a fé é, portanto, a virada que passa através desse talvez teológico, que pressupõe aceitar o risco de firmar o pé na esperança do invisível e absoluto que possibilita toda realidade visível.

O dilema da fé no mundo de hoje.

O paradoxo fundamental da fé no mundo de hoje consiste na idéia que se firmou de tradição como uma recuo ao passado. A fé que vive da tradição é rejeitada como algo passado e superado. O homem moderno pensa no futuro e toda a sua vida está em função do progresso e do desenvolvimento. Tudo que faz unir-se ao passado é necessariamente descartável. A tradição e a fé se estão vinculadas não encontram aí espaço para sobreviver. Daqui nasce a proposta intelectualista protestante da desmitologização, ou do pragmatismo católico do aggiornamento. Mas Ratzinger diz que não basta essa mudança para resolver o problema. A fé tem a ver com o eterno e com o progresso do mundo, mas não se resume somente a isso. Deus está no mundo e o mundo revela Deus, mas é preciso superar o positivismo da fé e pragmatismo do fazer o progresso. A fé não pode ser reduzida a um aspecto da vida humana, como quiseram fazer diversas correntes filosóficas (Kant, Hegel, Marx) e teológicas (TdL). A fé não pode ser reduzida àquilo que sentimos e tocamos; ela é mais.

O limite da compreensão moderna da realidade e o lugar da fé.

Há varias formas de relacionar-nos com a realidade: a orientação mágica, a forma metafísica e atualmente a forma científica. Para Ratzinger o modo como o ser humano se relaciona com a realidade podem ser identificados em duas fases.
· O historicismo: preparado por Descartes recebeu sua forma definitiva por meio de Kant, porém foi com Vico que o historicismo deu grandes avanços. Na Escalástica a equação verus est ens: o ente é a verdade foi composta por Vico do seguinte modo verum quia factum, ou seja, só podemos conhecer como verdadeiro aquilo que foi feito por nós mesmo. O ser humano é agora aquele que cria. Verdade é fazer e não mais acolher a verdade do ser criador que pensa e cria com seu pensamento. É o ser humano quem fazendo, dá sentido a tudo que faz. Em Vico já se vislumbra o nascimento da ciência com seu método positivista da experimentação.
· A segunda fase é aquela do pensamento técnico: agora não é mais verum quia factum e sim verum quia faciendum, ou seja, a verdade que interessa não está mais ligada nem ao ser nem a historia dos seus atos passados, mas sim a verdade é a transformação do mundo, que consiste em dar-lhe forma. O factum foi sendo progressivamente substituído pelo domínio do faciendum, ou seja, pelo que é factível e deve ser feito. Por isso foi se confirmando mais tarde a tese que o ser humano somente pode conhecer aquilo que se pode realizar; e quanto mais se realiza mais garantia se tem que se conhecem os meios de fazer e sua técnica. Desta idéia nasce a necessidade da experimentação por meio da repetição. Com isso surge o método científico que resulta da associação entre matemática e a facticidade observada no experimento repetível, como o único portador de certeza confiável.
· Mas qual o lugar da fé: no contexto da faciendum a fé ocupa o lugar de um projeto ou instrumento de transformação do mundo. O plano de transformação social torna-se um modo que a teologia encontrou para se colocar dentro deste quadro teórico. Mas essa não pode ser o lugar específico da fé nesse duplo contexto historicista x cientificista. A fé não faz parte da relação entre o saber e o fazer. O lugar da fé é por excelência o firmar-se e o entender o sentido de tudo. Não constitui um saber pragmático das realidades tangíveis e visíveis, mas sim uma acolher e aceitar a infinita distância entre o inefável e finito. A fé estar no encontro entre o tangível e o intangível, o contingente e o imensurável.

A fé como ato de firmar-se e de entender:


A fé é uma opção fundamental, é um salto sobre o abismo infinito entre o ser visível e invisível. A fé neste sentido não pode ser uma coisa que se encontre e se prove com dados físicos experienciais. Na estrutura do tipo de conhecimento científico só é verdadeiro aquilo que se prova; esse tipo de saber não pode ser utilizado para encontrar a fé. A certeza científica que é sempre um talvez, não pode esgotar a dúvida, pois dentro do conhecimento factível não há caráter absoluto.
O que seria a fé, então? A fé cristã significa conformar, assumir a opção de que o invisível é mais real do que o visível. Ter fé neste sentido significa, então, compreender a nossa existência como resposta à Palavra, ao logos que sustenta e conserva todas as coisas. Por isso a fé é inexoravelmente um firmar-se e entender-se do ser humano, aceitando e confiando a Deus que tudo cria e sustenta com seu logos. Fé é assim o aceitar antes do fazer, sem menosprezar o fazer. A fé é uma atitude de responsabilidade ante o invisível como verdadeiro fundamento do real. Mas para isso é necessário à teologia superar os dois grandes desafios sob a forma de positivismo e fenomenismo da fé. Uma fé que necessite ser provada já não é autêntica e nunca levará a cabo tal missão. A fé é o primado do invisível sob o visível e do receber sob o fazer.


A razão da fé:

Qual a razão da fé? Já vimos que a fé não é um conceito factível. A fé segundo Ratzinger tem sua razão de ser na essência original do mistério. É Deus a razão da fé, e esse Deus tem um rosto e é encontrado na pessoa de Jesus de Nazaré. A razão da fé então é o entendimento não como conhecimento factível e sim sentido último do encontro com esse mistério. O entender no pensar de Ratzinger significa aprender a conceber o fundamento sobre o qual nos firmamos como sentido e como verdade última de toda realidade e que o real não pode dar sentido a si, mas recebe de Deus sua razão de existir. Fé e entendimento não se contradizem e sim estão em concordância e são tão inseparáveis como fé e firmeza.

Creio em ti.


A fé cristã não é fé numa coisa é antes fé numa pessoa. Ela é o encontro com o homem Jesus, e nesse encontrar-se ela experimenta o sentido do mundo como pessoa. Pois Jesus revela ao mundo e ao ser humano o sentido e a verdade da criação. Ele é o ponto de encontro entre Deus criador e a sua obra criada. O sentido do mundo encontra-se assim neste “tu” fundamental que é fundamento e não carece de fundamento, pois é ele quem oferece sentido a tudo.
Mas esse encontro, alerta Ratzinger, não elimina a possibilidade de dúvidas, tentações e incoerências. O fiel experimentará sempre essa escuridão em que o protesto da descrença o envolve como uma prisão lúgubre e intransponível, e em que indiferença do mundo, que continua agindo como se nada tivesse acontecendo, parece reagir apenas como escárnio à sua atitude de esperança. A atitude deve ser aquela da reverência do tremendum: eu creio em ti, Jesus de Nazaré, pois tu és o sentido (logos) do mundo e da minha vida!

HOMILIA DO XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM ANO B.

A INICIAÇÃO CRISTÃ: UM CAMINHO DE FÉ E COMPROMISSO.

O povo de Deus, por diversas vezes, senti-se ameaçado por escravidão, perseguição e provações de todo tipo. Muitas vezes Israel experimentou-se como um nada e viu-se num perigo de morte. Parecia que o povo iria acabar-se! A invasão dos assírios no ano de 722 aC e a tomada de Jerusalém que desembocou no exílio imputado por Nabucodonosor aos israelitas nos anos 597 a 587 aC, são exemplos desta situação difícil. Diante dessa realidade a saída do povo era confiar na misericórdia e no amor de Deus que não abandona o povo eleito.
A descrição profética da volta jubilosa dos exilados à pátria, que é apresentada hoje na primeira leitura, é tomada de sentido evangélico, sobretudo quando voltamos nossa atenção ao Deus libertador e salvador. É Jesus quem chama a todos da escravidão do pecado e da morte à luz da vida. Assim a volta dos exiladas é interpretada como o novo êxodo e eterna redenção do povo eleito. Essa volta pressupõe um caminho catecumenal, no qual o fiel reconhece a total soberania da vontade de Deus. O papel do cristão resume-se em refazer, ou seja, voltar o caminho e buscar o Senhor (metanoia). É redescobrir a alegria de ser salvo, de ser amada e estar nos braço do Deus uno e trino. Desta forma, a primeira leitura põe em evidência o aspecto da conversão e presume um ritual catecumenal que parte Deus e exige uma resposta do ser humano.
Desde os primórdios da Igreja cristã a iniciação da fé foi uma marca fundamental do processo de adesão a Cristo. Para ser cristão o fiel precisa entender a necessidade de refazer o caminho. Como afirma São Cirilo de Jerusalém nas suas catequeses mistagógicas: “as obras de satanás são todos os pecados, aos quais é necessário renunciar, assim como quem foge de um tirano atira para longe de si as armas dele”[1]. Quem quer ser cristão mesmo deve fugir a oportunidade de pecar. Ora, fica claro que não é somente dizer senhor e pronto, é imprescindível romper com um estilo de vida que não corresponde com a Nova experiência em Cristo. A iniciação cristã não conclui-se com o batismo, crisma e a eucaristia. A vida cristã supõe uma abertura de alma ao amor crístico. Por isso afirma Santa Catarina de Sena: “se o homem não se elevar, não contemplar e não procurar a desmedida bondade e caridade divina tal e qual a nós revelou, jamais chegará a grande abertura de alma e perfeição, mas se tornará mesquinho, incapaz de acolher a si mesmo e o próximo”[2]. Assim, somos tomados de consciência que rito sem a vida é ritualismo, ato celebrativo sem testemunho perde o sentido real da sacramentalidade ritual.
A iniciação da fé, é, portanto, um caminho de fé que inicia com a busca de uma vida nova. Por isso para Santo Abrósio o signiificado do batismo é um morrer para o pecado e ressurgir para a vida. Segundo ele o batismo é o desígnio de Deus para restaurar a humanidade pecadora. A fonte batismal é uma sepultura onde se morre vivo, e se ressuscita enquanto vivo[3]. Batizar na morte de Cristo é morrer para o pecado. Por isso na iniciação da fé somos crucificados com Cristo. O “efata” do ritual de iniciação é um alerta para a vida nova que se processa a partir da experiência com o ressuscitado.
Assim podemos construir um itinerário da iniciação cristã, elencando alguns elementos fundamentais, que se apresentam no Evangelho de hoje: primeiro é Jesus quem se manifesta ao homem. É necessário que Cristo passe pelo caminho (Mt 20-30). Depois, esta manifestação é misteriosa: o cego, que representa o homem no caminho da fé, não vê Jesus; tem a intuição da presença do Senhor nos acontecimentos, mas mesmo assim, ele já experimenta sua fé entregando-se à iniciativa salvífica de Deus. Por isso é necessário coragem para manter-se no caminho de Deus. Como sempre afirmo difícil na é entrar na vida cristã, difícil é permanecer nela. Por fim, o convite e o incentivo da comunidade são fundamentais nos primeiros passos da fé: coragem, levanta-te, Jesus te chama! Às vezes muitas pessoas por viverem situações fracassadas na fé não servem de encorajamento para os catecúmenos, ao contrário são pedras de tropeço no caminho. Mas a comunidade deve ser um sinal da graça e do amor do Mestre: coragem, ele te chama! O homem ao responder ao chamado, larga o manto, sinal do velho homem, marcado pela morte, dá um pulo e fica de pé: sinal de prontidão e da atenção. É o homem na vida nova. A pergunta de Cristo é terapêutica da alma: que queres que te faças? A resposta é confiante: que eu veja! Ver Cristo, ver Deus esse é o deseja maior do ser humano. Ver a Deus é habitar nas alturas celeste, contemplar a plenitude da graça e construir uma vida na paz na santidade e na justiça. Para tanto o caminho da fé exige comprometimento, testemunho e adesão. Cabe superar um conceito de fé passiva e anônima. A fé não pode ser encarada como tradição familiar ou costume doméstico. Esse tipo de fé é infantil e leva a nada. Como Bartirmeu, é mister fazer uma opção consciente e madura da fé. Tudo isso comporta um novo modo de enfrentar a questão da iniciação cristã. O cristão deverá percorrer não tanto um caminho feito de etapas e gestos sacramentais, que leva a entender a iniciação como ritos e festa, e menos como compromisso de vida, mas como um itinerário de fé, um catecumenato renovado, onde o critério seja a consciência da necessidade de uma vida nova. Sem isso os gestos sacramentais feitos em prazos fixos perdem sua eficácia.

Pe. Fantico Nonato silva Borges, CM
[1] São Cirilo de Jerusalém, Catequeses Mistagógicas,Petrópolis: Vozes, 1977, nº 9.
[2] Santa Catarina de Sena, As Cartas, São Paulo: Paulus. 1998, PP. 93-94
[3] Santo Ambrósio, Os Sacramentos e os mistérios: a iniciação cristã nos primórdios, Petrópolis: Vozes, 1972, PP. 14-15.

Homilia da XXIX semana do tempo comum ano B


O cântico do servo sofredor de Isaias culmina na resposta de Jesus no Evangelho: “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos (cf. Mc 10,45). Aqui já se vislumbra o motivo fundamental da morte de Jesus: resgatar muitos irmãos pelo seu sangue derramado. Em outras palavras o que se deseja afirmar é que pela morte-entrega livre de Jesus Deus reconciliou o mundo a ele. Deste conteúdo teológico nasce a doutrina da satisfação que consiste na tentativa de esclarecer o mistério da eficácia redentora da Páscoa de Cristo.
Como na raiz do pecado das origens estava à desobediência e a autossuficiência, convinha que aquele por quem todas as coisas seriam reconduzida ao Pai, aquele que recapitularia tudo nele, fosse o mais obediente e se esvaziasse de si dando sua vida como serviço à reconciliação. Para Ireneu de Leão Jesus que pela obediência de servo e sofrendo até a morte reconduziu seus irmãos a Deus. Para Ireneu “era preciso, portanto que o que estava para eliminar o pecado e resgatar o homem, digno de morte, se tornasse exatamente o que era este homem reduzido à escravidão pelo pecado e mantido debaixo do poder da morte, para que o pecado fosse morto por um homem e assim o homem saísse da morte. Como pela desobediência de um só homem... muitos foram constituídos pecadores, pela obediência de um só homem... muitos foram justificados...” (cf. Ireneu, Contra Heresias, Lv III, 18,7).
Santo, inocente e sem mancha, Jesus tomou sobre si, por seus irmãos, os pecados que lhes privavam de viver em Deus. Assim, ele reparou aos olhos de Deus as ofensas humanas contra o amor do Criador. Por isso, ele tornou-se o sumossacerdote eminente, perpétuo, definitivo. Ele é capaz de compadecer-se das nossas fraquezas, pois ele mesmo sentiu na sua carne as dores humanas, exceto o pecado. Por ter assumido nossa condição inteiramente, nele encontramos nossa única salvação. Pois para Santo Atanásio, ele é sumossacerdote porque se fez vitima e sacerdote, assumindo tudo que o homem é. E assim pôde recapitular o ser humano integral.
A deia da doutrina da satisfação precisa ser bem entendida, pois um mal entendido pode colocar Deus diante de um problema. Ora, se Deus pode tudo, porque não poupou o sofrimento do Filho? Deus quer castigo do Filho? Mas ele não pecou? Então esse Deus é cruel!? Porém, a compreensão não é bem essa. Desde Idade Media se fala na doutrina da satisfação, essa como já falamos é a expressão da motivação da morte de Jesus. Por amor Jesus quer sofrer pelos seus irmãos que não podendo salvar-se são por ele resgatados. Na tradição judaica o irmão mais velho sempre tinha a missão de resgatar seus irmãos que por um motivo qualquer caíram em escravidão. O irmão mais velho tinha assim a missão de resgatar seus irmãos mais jovens. Ora, Cristo é nosso irmão mais velho. Nele tudo foi criado e sem ele nada do que existe poderia existir. Assim Cristo salva-nos como irmão mais velho, resgata-nos de uma divida impagável por nós. Portanto a motivação da morte de Cristo é por amor aos seus irmãos. Por amor a nós Deus-Filho se faz servo e pobre a fim de enriquecer a todos os que nele crêem.
O grande convite de hoje conclui os dois primeiros feitos após os anúncios solenes da paixão. Ser cristão é essencialmente seguir o Mestre em sua vida e suas palavras, para isto é preciso servir a todos. Mas o terceiro e mais radical convite é sem dúvida o feito hoje: aprender com o Senhor a dar a vida.
Dar a vida é deixar o egoísmo, a “egolatria”, que tanto impera em nossa cultura moderna. Dar a vida é morrer diariamente em vista do bem alheio. Dar a vida é colocar de lado nosso comodismo e investirmos no serviço ao irmão. Dar a vida é não ter medo de sermos de fato “profetas”, anunciando a boa nova do Evangelho que sempre questiona as estruturas de morte que escravizam nossos irmãos.
Caros filhos, nestes dias olhemos melhor para nós mesmos. Tentemos descobrir, bem lá no fundo de nosso coração, o secreto desejo de poder que nos tenta e lutemos para dominá-lo com a ajuda onipotente de Jesus, o sacerdote perfeito.
Disso tudo fica a lição de que não podemos chegar ao reino de Deus com atitudes de superioridade, arrogância e egoísmo. Atitudes que Jesus reprovou no tempo dos apóstolos e continua a reprovar. Quem quiser possuir a vida em si mesmo precisar aprender a servir os irmãos. No reino de Deus não são os títulos e credenciais que abrirão as portas do paraíso, mas a vida colocada a serviços dos outros, pois quem quiser ser o maior deve ser o menor. Se o mestre veio para servir quem somos nós para exigirmos serviçais? Não somos mais que servos inúteis. Peçamos humildemente a capacidade de escolher – como bem ensinou, o apóstolos dos pobres, São Vicente – a humildade e os últimos lugares ao invés das horarias deste mundo para ganharmos no céu a coroa da justiça!
Pe. Fantico Borges, CM

Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C) Um homem vem a Jesus pedindo que diga ao irmão que reparta consigo a herança. Depois ...