segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Os níveis humanos para viver a pobreza evangélica.



I. Nível psicofisiológico.


1.Posse dos bens materiais e necessidades psicológicas ligadas a estes bens.

A atitude humana típica deste nível implica como dissemos, o fato de considerar as coisas como orientadas para uma necessidade, e para um fim específicos, a da sobrevivência e a do desenvolvimento. De qualquer maneira, quando as coisas e os bens se tornam fins em si mesmos, quando procuramos possuir alimentos, coisas, poder, pessoas etc.; por necessidade de segurança, ou simplesmente, pelo desejo de ter e não para sobrevivermos e nos desenvolvermos, então há, evidentemente, uma distorção da pobreza: existe uma confusão entre meio e fim. O uso excessivo torna-se abuso e pode também ser prejudicial a uma existência ordenada. Portanto, a pobreza não consiste em não possuir nada, mas em colocá-las em seu devido lugar. A pobreza evangélica, antes de mais nada, é uma atitude existencial, coerente e profunda, que brota do coração, isto é, do interior da pessoa.

2. O justo uso das coisas.

As coisas e a sobrevivência, no primeiro nível, são vista não somente em relação a si mesmas, aos outros e ao sujeito, mas em relação ao superabundante mistério entre Deus e o homem (terceiro nível). Sob este ponto de vista, a pobreza torna-se um conselho, uma atitude transcendente. O terceiro nível predispõe o homem a assumir as atitudes exigidas pelos outros dois níveis e, além disso, oferece oportunidade de santificação, isto é, de autotranscendência. O nosso modo de usar os bens materiais assumem, consequentemente, novos fins e perspectivas: procuramos usa-los sensatamente, não simplesmente para nosso crescimento ou sobrevivência (primeiro nível), não só para comunicar, interagir com os outros (segundo nível), mas também, através do terceiro nível, como meios para encontrar o amor de Cristo e nos doarmos a Ele, por meio do dom das coisas e das pessoas.
No passado, havia a tendência de se crer que os bens fossem em si mesmos um obstáculo à união com Cristo. Pensava-se, pois, que a vida da contemplação, da união contemplativa com Deus, consistia simplesmente no abandono de todas as coisas. Isto pode ser ou não verdade. O uso das coisas (necessárias) pode não ser obstáculo, mas uma abertura ao amor de Cristo, se orientado de maneira justa, segundo os fins para os quais elas nos foram dada e para os quais podem servir. Isto implica um despojamento, um dom generoso de tudo o que nos foi confiado. A renúncia aos bens, assim como o uso prudente das coisas necessárias, não nos levará necessariamente a união com Deus se o próprio Cristo não nos impelir a isto.
Nosso modo de usar as coisas pode ser um fator que ajuda ou que divide, seja dentro de nossa personalidade, seja nas relações com a comunidade. Divide-nos quando consideramos os bens somente com base em seu valor ou porque dão certa segurança, e somos, portanto, esmagados pelo fanatismo que nos impele a colecionar, a guardar, a manipular. Um consumo indiscriminado é também a máscara de uma personalidade superficial que vive simplesmente para momentos fragmentários de satisfação. A integridade do homem total é, pois eliminada. No primeiro nível, os bens materiais, a complacência e a identificação não-interiorizante, tornam-se metas fascinantes e limitam a riqueza de uma realidade encontrada por meio de uma integração pessoal, por meio da auto-transcendência. Limitando-nos a uma expressão parcial deformada da totalidade de nosso ser. Por meio dos bens materiais o homem e a mulher podem encontrar-se, podem reconhecer seus limites, sua necessidade de tudo, até das coisas. Experimentam tangivelmente sua presença a si mesmo; contanto que o seu olhar para as coisas não seja cobiçoso, ávido, mas inclua uma interação com as pessoas e uma relação com Deus; segundo o grau hierárquico mais apropriado. O conselho interiorizado, ou o dom da pobreza, pode, pois, ser salutar; pode permitir-nos ir além dos impulsos de nossas necessidades no primeiro nível e emergir como pessoa total.
Não pode haver maior distorção da pobreza do que, simplesmente, reduzir o conselho ao problema de possuir ou não as coisas. As perguntas mais profundas que devemos fazer-nos são: “por que tenho isto?” “quanto quero?” “que farei com isto?” É indispensável uma volta ao evangelho, se queremos manter uma motivação e um equilíbrio objetivos: Cristo oferece o melhor vinho para a festa das núpcias; multiplica os pões; enche as cestas de peixes. Maria Madalena derrama sobre os pés dele óleo caro e perfumado. Mas Cristo não tem um lugar para descansar a cabeça. Vive com os bens postos em comum. Viaja sem bagagem. Suas vestes são divididas. É sepultado num túmulo de empréstimo. Embora pareça um paradoxo, é evidente que Cristo não identificou, a propósito das coisas, das pessoas e da situação com a visão cheia de preconceitos daqueles que o criticavam. Ele via a vida com mais profundidade, em termos cósmicos, não em termos de sobrevivência, de acumular bens, de gratificação, de desenvolvimento. Valorizou as coisas, as pessoas, a si mesmo como possibilidade para integrar todos os níveis da sua humanidade a serviço da manifestação da vontade e do amor de um Pai generoso.


II. Nível psicossocial.

1.Posse dos outros:

Neste segundo nível, pode desenvolver-se uma tendência à posse, dos confrontos das pessoas e deixar de lado elementos como: abandono à confiança em Deus e resposta ao seu amor através dos outros. O meu tempo, os meus pensamentos, as minhas preocupações não são simples interesses somente pelas coisas (para segurança, sobrevivência ou pelo desenvolvimento, como descrevemos antes no primeiro nível), são, antes, um desejo de tornar felizes Pedro ou Paulo. Isto não é um mau. Mas é tudo que podemos fazer? Devo faze-los felizes com os meus dons? Devo faze-los felizes, enfim, para que se tornem meus, pelo que receberei deles como retribuição? Qual é o lugar de Deus em tudo isto? Que devemos dizer de frases que ouvimos tão frequentemente: “oferecem a esta ou àquela família, ou paróquia, ou grupo, mas nada a nossa comunidade!”, ou então: “ Dão mais a esta irmã do que a mim!”. Não demonstramos, talvez, com tais palavras, nossas inseguranças, nosso medo de sermos rejeitados, de sermos deixados de lado? O desejo de posse é transferido da área das coisas à área das pessoas. Onde está a confiança fundamental em Deus que revela a sua providência através de muitas pessoas e não por meio de uma só à qual queremos nos apegar? Aprendemos, ao invés, a lançar um desafio: dar aos outros para deles receber. Aqui a pobreza se torna utilitarista, útil para a gratificação dos nossos sonhos no segundo nível, não expressiva do valor que professamos no terceiro nível.

2. Justo relacionamento com os outros

Valorizamos os outros porque sentimos profundamente o valor supremo de Cristo presente neles e de pertencer, com eles, a Cristo? O ciúme, a inveja deveriam ser tão evidentes em nossa vida? Valorizamos algumas pessoas somente para satisfazer nossa necessidade de ter alguém que se preocupe conosco, que nos ame, que nos aceite? Procuramos contentar as necessidades materiais das pessoas para dar aos homens valores espirituais mais profundos? Este nível nos desafia a deixar os outros livres em nosso amor por eles. E isto deve nascer de uma forte convicção de termos mais necessidades de Cristo de que de todos os outros, porque Cristo nos possui inteiramente e cuida de nós. Portanto, a pobreza evangélica é um meio através do qual podemos regular as necessidades psicológicas implicadas no segundo nível.
Somente no abandonar-se a Cristo uma pessoa pode descobrir dentro de si a capacidade que tem de enriquecer os outros e de ser verdadeiramente por eles. A pobreza neste nível, à luz do terceiro, significa experimentar no profundo do nosso ser a atormentadora ansiedade de sermos separados e sós, de lutarmos para amar livremente, sem reservas e com fidelidade, a fim de que os outros possam existir, desenvolver-se e amar livremente. Significa experimentar o vazio e dores atrozes da recusa por parte da família, ser ignorado e esquecido, mesmo temporariamente, pelos amigos, criticado pelos inimigos; por outro lado, significa escolher e oferecer aos outros o amor enriquecedor dos próprios amigos, a generosidade da própria família e o estímulo dos conhecidos.
O grupo e a comunidade que vive a pobreza evangélica dentro destes níveis não se torna simplesmente uma convivência social ou uma gratificação, mas, como diz Rahner, “Um meio para servir a Ele continuando a sua vida e testemunhando o seu poder”. Um meio, um viver juntos na vocação para realizar melhor a missão do crucificado. Enriquecemo-nos com uma comunidade como esta, pois somente à medida que procuramos dar mais do que recebemos construímos uma verdadeira fraternidade.

III. Nível espiritual-racional

Por terceiro nível psíquico do homem e da mulher entendemos a capacidade de julgar, de valorizar, abstrair, transcender, ir além de si mesmo. Graças a este dom inato, as necessidades dos outros níveis podem ser integradas e reguladas. Através dele, o Homem-Deus, e os elementos sobrenaturais podem tocar nossa vida e entrar em nosso coração. O conselho de pobreza pode, portanto, elevar as necessidades naturais e pô-las corretamente na hierarquia da ordem criada. Podemos esquecer-nos de nós mesmos. A atitude e abandono neste nível nos impelem simplesmente a não dar muito valor às coisas para o nosso bem (primeiro nível), nem mesmo apegar-nos aos outros para o nosso, e para o seu bem (segundo nível), mas nos abrem a possibilidade de despojar-nos de nós mesmos por Ele. O abandono á providência encontra sua continuação no abandono de nossa vida. Que inclui nosso tempo, qualidades, nome, estado social, poder, o serviço amoroso de Deus e dos outros.

1. Despojamento

Quando somos, totalmente, possuídos por Cristo e entregues a ele, não podemos, de maneira alguma, desapegar-nos dele. Portanto, mas concretamente, preocupo-me com salvaguardar minha saúde e, se estou doente, faço o possível para recuperá-la. Se estou atormentado por doenças crônicas, ofereço aos outros e a Deus os limites da minha fraqueza física como manifestação de fé em uma riqueza que vai além das funções corporais. Estou verdadeiramente convencido de que, afinal de contas, a minha respiração depende de Deus? Estou disposto a tornar-me disponível e mudar minha personalidade, se vejo que isto impede o trabalho para Deus?
O abandono total à providência encontra sua concretização no dom das próprias qualidades por meio de um serviço generoso a Deus e aos outros. Se nos sentimos dotados de um coração sensível, de uma mente que analisa, de uma intuição profunda, de uma capacidade de presença, de um ser guiado, de organizar, devemos oferecer tudo, realizando o máximo de nós mesmos por Deus; dentro dos limites de nossa potencialidade. Podemos estragar nossa vida se recusarmos a oferecer-nos, fazendo crescer em nós um sentimento de aborrecimento, de apatia, de cinismo, de falta de significado, de desespero. Essas coisas tomam logo o lugar de nossa esperança vibrante, de condividir alguma coisa com Deus no criar e renovar esperança. A humildade e a fé podem crescer muito melhor num terreno de motivações incondicionadas, não egoístas quando se faz a doação das próprias qualidades.
Uma consciência constante de nossas fraquezas e limitações, de nossa pobreza interior nos levará aos pés de Cristo e nos ajudará a medir as distancias das preocupações pelo lucro, pelo ganho, pelas aprovações, que criam, em nós, uma estima pessoal falsa e instável. Se soubermos ver e tratar a nós e aos outros, por aquilo que somos independentemente da fama e do poder, aceitando os nossos dons e os dos outros, os nossos limites e os dos outros, com humilde e gratidão, não teríamos necessidade de forçar para alcançar um alto cargo, ou manipular para ter sucesso e se manter no poder. Só aqueles que não tem profundidade interior e se sentem muito inseguros têm necessidade de pôr à mostra o próprio nome, o status, o poder e os próprios dons. Quem é humilde e viver com amor a vocação que Deus lhe confiou não precisa de aplausos porque sabe em quem pôs sua confiança e esperança.

2. Transcendência

Há, sobretudo em nossos dias, uma acentuada tendência inconsciente, mas muitas vezes observável, a construir a própria vida com base em um sucesso calculável: a capacidade profissional e não a vida religiosa. Para muitos, a eficiência é mais importante que a eficácia. Mas como religiosos, não somos chamados a servir simplesmente uma sociedade funcional. Devemos viver radicalmente os valores humanos e espirituais nos quais se encontram as verdadeiras riquezas.
A verdadeira pobreza implica uma necessidade humilde de perdoar os outros por serem humanamente limitados, como o somos nós, de aceitar tudo o que acontece como expressão clara do amor de Deus em nossa vida diária. O perdão nasce de uma sólida integração de todos os níveis do nosso ser. Se fôssemos pobres em nossa atitude interior e tão humildes no perdoar, encontraríamos tão frequentemente silêncios hostis e intermináveis nos seio de nossas comunidades? Devemos desejar ser criativos para o futuro em vez de acumular para o presente e chorar o passado. O perdão revela o modo como bendizemos o futuro e o preparamos. O perdão ainda é o melhor remédio para o ódio e as rivalidades. Quem ama perdoa e sabe que o perdão gera a paz.

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