sábado, 20 de outubro de 2012

Igreja catolica sinal escatólogico da vivência do Reino de Deus.

I REAVIVAR DA 2ª ETAPA DO ECC DA REGIÃO NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO.

1. Cristo luz dos povos e a Igreja luz de Cristo no meio do mundo!



Prometi apresentar brevemente os principais documentos do Concílio Vaticano II. Pois bem, vamos tratar agora da Lumen Gentium (Luz dos Povos), o documento do Concílio sobre a Igreja.

A primeira coisa importante: a luz dos povos não é a Igreja, mas Cristo. É o que afirma logo a primeira frase do nosso documento: “Sendo Cristo a luz dos povos, este Sagrado Concílio, congregado no Espírito Santo, deseja ardentemente que a luz de Cristo, refletida na face da Igreja ilumine todos os homens, anunciando o Evangelho a toda criatura” (LG 1). Cristo é a luz, o sol; a Igreja é como a lua: só ilumina se refletir na treva do mundo a luz do sol, a luz de Cristo. Assim, quando a Igreja fala dela mesma, não é para ficar preocupada consigo própria, mas para melhor viver, testemunhar e anunciar Jesus Cristo, nosso único caminho, nossa única salvação.

Outro aspecto importante. O Concílio contempla a Igreja primeiramente como mistério, isto é, como parte do plano eterno de Deus para a salvação da humanidade. Assim: “Aos que acreditam em Cristo, (o Pai) quis convocá-los na santa Igreja, a qual, já prefigurada desde a origem do mundo e preparada admiravelmente na história do povo de Israel e na antiga aliança, e instituída nos últimos tempos (por Jesus Cristo), foi manifestada pela efusão do Espírito Santo (em Pentecostes) e será consumada em glória no fim dos séculos” (LG 2). A Igreja é, portanto, parte do plano de salvação de Deus. Ela não é nossa, é de Deus. Sua missão é ser o lugar, o espaço, a comunidade onde a humanidade pode encontrar Deus em Jesus Cristo e ser santificada no seu Espírito Santo. Por isso a Igreja, preparada pelo Pai, fundada pelo Filho e continuamente santificada pelo Espírito, é semente do Reino de Deus que nela já atua misteriosamente (cf. LG 3). É na Igreja que se experimenta de modo mais intenso o Reino trazido por Jesus!

Essa Igreja fundada por Cristo está continuamente unida a ele, como o corpo à cabeça. Cristo, pela ação do Espírito presente nos sacramentos, a santifica, a sustenta, a vivifica (cf. LG 7). Mas, onde se encontra a Igreja de Cristo? “Esta Igreja, como sociedade constituída e organizada neste mundo, subsiste (permanece toda inteira) na Igreja católica governada pelo Sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele ainda que fora do seu corpo se encontrem realmente vários elementos de santificação e de verdade” (LG 8).

O Concílio privilegia uma imagem para descrever a Igreja: o Povo de Deus. Dedica todo um capítulo a essa descrição. Dizer que a Igreja é Povo de Deus é recordar que nela se cumpre tudo quanto Deus havia preparado em Israel, é também afirmar que esse povo é caminheiro, peregrino neste mundo e, portanto, sempre necessitado de conversão. A pátria deste povo é o céu (cf. LG 9). Significa também afirmar que, neste povo, todos têm uma mesma dignidade, conferida pelo Batismo. Mais que ser padre, freira, papa, bispo… o importante é ser cristão! Tudo o mais decorre daí. Assim, todo batizado é membro do povo sacerdotal que, unido a Cristo se oferece ao Pai pela humanidade e procura construir o Reino de Deus enquanto caminha no mundo (LG 10-13). Este povo de Deus é um povo que estar no mundo a serviço da salvação de toda a humanidade. A Igreja não existe para si mesma, mas para levar Cristo, Luz dos povos, a todos os homens. Por isso, todos os membros do Povo de Deus têm responsabilidade na ação missionária da Igreja. Mas, quem são os membros desse povo? Somente os batizados em Cristo Jesus. É muito importante deixar claro que “povo” aqui é o povo dos batizados, independente de classe social, raça, cultura ou modo de pensar. Então, o Povo de Deus é a Igreja nascida da Trindade Santa, peregrina neste mundo, testemunha e construtora do Reino trazido e anunciado pelo Senhor Jesus na potência do Espírito, e peregrina rumo à Pátria.

Depois de deixar claro que todo cristão é membro do Povo de Deus, o Concílio olha os dois grandes grupos presentes neste povo: os cristãos leigos e os cristãos ordenados para o ministério (Bispos, padres e diáconos). Aí, afirma que os Bispos são sucessores dos Apóstolos, em comunhão com o Papa, Sucessor de Pedro. Eles têm a autoridade para pastorear, ensinar e santificar em nome de Cristo. Afirma-se também que os padres são colaboradores dos Bispos e que os diáconos são servidores da comunidade, auxiliando o Bispo e os padres no seu ministério (LG 18-29). Os Bispos são verdadeiros representantes de Cristo na sua Igreja diocesana, a qual pastoreiam com a cooperação de seus padres. Ali ele edifica, no Espírito Santo, a Igreja, pela pregação da Palavra de Deus de acordo com a Tradição católica e apostólica, e também pela celebração dos santos sacramentos, pelos quais Cristo age e santifica o seu rebanho. Depois o Documento detém mais uma vez no papel do leigo para mostrar que eles, como membros do Povo de Deus, participam da missão de Cristo, já que receberam a unção no Batismo e na Crisma e são alimentados pela Eucaristia. Os leigos têm a missão profética de anunciar o Cristo Jesus e testemunhá-lo diante do mundo (cf. LG 30-38).

Finalmente a Lumen Gentium recorda que todos na Igreja são chamados à santidade, isto é, a uma vida de profunda comunhão com o Senhor. Este é o maior testemunho e a maior obra da Igreja! Essa vida de santidade, na qual faz brilhar a luz do evangelho o carisma da Igreja, chama cada batizado a uma vida concreta, real e comprometida com a construção do Reino. O Reino é um projeto escatológico, ou seja, aponta para a plenitude da vida, mas essa vida principia aqui a agora. O reino não é idealista metafórico, mas concretude e construção no mundo nosso de cada dia. Por isso, a Igreja é sinal continuo da obra de Cristo, como veremos abaixo.



2. A Igreja como sinal antecipatório do Reino escatológico

A Igreja como continuadora da obra de Cristo tem sua natureza escatológica como base fundamental para sua finalidade no mundo . Ela é sinal desse povo messiânico que caminha entre a fé e a esperança nas promessas de Cristo. É imagem visível desse povo da Nova Aliança, que vive “já” aqui o início da realidade última, que ainda está para efetivar-se definitivamente. Assim, pode-se notar que a Igreja é sinal antecipatório da promessa final, pois exprime em seus gestos sacramentais e na sua vida cotidiana a esperança da salvação .

A Igreja como sinal escatológico é mais claramente percebida quando tomamos consciência da sua missão, que consiste de modo geral em mostrar que tudo possui um acabamento em Cristo, e ao mesmo tempo levar as pessoas ao seguimento de Jesus. Neste sentido a Igreja é o lugar que devemos sentir primeiro os sinais do Reino; ela deve transparecer essa presença de Cristo ressuscitado tanto nas suas ações hierárquicas e sacramentais quanto na atividade pastoral .

Diante dessa missão eclesial, defrontamo-nos com uma realidade complexa e conflitiva. O reino, presente “já” na realidade temporal, enfrenta oposições internas e externas . A Igreja experimenta, dentro dela, a oposição entre a pureza da mensagem de Jesus e as situações de injustiças presentes no mundo e na própria Igreja. O Concílio Vaticano II já bem ressaltou essa realidade ao afirmar: “a Igreja possui já na terra um santidade verdadeira, embora imperfeita” . Essa situação acontece porque ela possui uma raiz santa, mas no seu interior habita o ser humano imperfeito; e ao mesmo tempo ela vive no mundo, sendo por ele influenciada; todavia esse encontro não é totalmente um “mal”, pois o lugar da Igreja é a história e, por conseguinte, o mundo.

Então, já podemos notar que um dos primeiros sinais da antecipação escatológica do reino na vida do povo de Deus é a luta pela superação de toda tipo de injustiça que geram a imperfeição nas relações entre santidade cristã e vida concreta do povo. Por isso, sublinha Gustavo Gutierrez: “a Igreja no Concílio Vaticano II afirmou a sua vontade de serviço. Pois as formas concretas que essa atitude deve assumir estão em função – devem estar necessariamente em função – do mundo no qual a comunidade cristã está presente” . A Igreja é chamada, assim, a se engajar num processo constante de conversão, num processo de reconciliação com Deus e com os homens de todas as raças, línguas e culturas .

Certos de que este etapa histórica da comunidade de fé não é o Reino definitivo, e por isso mesmo, ela não é perfeita, temos, também, que admitir que nem por isso estamos desobrigados a buscar a verdade, a justiça e o amor. Não se pode solapar da comunidade cristã a sua missão fundamental de ser dispensadora das graças e virtudes divinas. No campo da esperança escatológica, a Igreja representa um lugar onde se vivencia a Boa Nova. Por essa razão, para Jon Sobrino, Jesus anunciava o reino como Boa Nova para os pobres, não como ideal ou utopia futura, mas como esperança concreta que incide na transformação das estruturas materiais e sociais . Por causa disso, a comunidade cristã deve representar um sinal vivo da presença salvífica de Cristo na história humana. Como instrumento do reino deve construir caminhos mais humanos e fraternos, onde a humanidade possa marchar rumo ao Reino definitivo; e assim, sentir-se impelida, constantemente, a buscar a santidade, a justiça e o amor, por uma vida de caridade que torne eficaz o anuncio de Evangelho.

Essa busca da santidade perfeita corporifica-se no compromisso de cada fiel em promover os valores do reino nas diversas realidades em que vivem, pois a escatologia tem um caráter histórico-temporal, porque, a existência cristã vai tornando-se efetiva à medida que se desenvolve e cresce os valores do Reino. Por isso, os Bispos em Medellín afirmavam: por mediação da consciência, a fé – que opera pela caridade – está presente no compromisso temporal dos leigos como motivação, iluminação e perspectiva escatológica, e dá sentido integral aos valores baseados na dignidade humana, na união fraterna e na liberdade, que voltaremos a encontrar limpos de toda a mancha, iluminados e transfigurados, no Dia do Senhor” .

A obra de Cristo continua na missão da Igreja. O mandato de Jesus é para que todos se voltem para o Pai e busquem a justiça do Reino. É na missão de Jesus Cristo que a Igreja encontra seu sentido e sua força. A missão dela nasce da missão do Mestre. Assim a Missa da comunidade eclesial consiste em prolongar no mundo a presença do Senhor, especialmente, quando ela anuncia a mensagem da esperança salvífica,

pois, o Reino que está por vir não pode ser totalmente alheio a este mundo, mas já acontece e realiza-se em figura sacramental na atividade de Cristo por meio da Igreja . Assim, a comunidade cristã não pode esquivar-se dessa tarefa; sua condição escatológica não é um privilégio, mas uma forma histórica de manifestar ao mundo as maravilhas do Senhor. Em outras palavras, o anúncio da esperança do reino é a primeira e principal tarefa da Igreja.

A Igreja, portanto, é, mais nitidamente, sinal do reino quando trabalha conjuntamente a salvação e a libertação, a esperança e a realização efetiva e afetiva da graça, pois num continente como o nosso, explorado e espoliado, a salvação não podem ser dissociada da vida, transformada num discursos consolador. Como bem afirma L. Boff, a escatologia deve falar do presente em função do futuro. “A escatologia, como formula Rahner, não é uma reportagem antecipada de acontecimentos que irão acontecer no futuro, mas é a transposição no modo de plenitude daquilo que aqui vivemos no modo de deficiência.” . Assim, as realidades escatológicas são realidades que começam não após a morte, mas já devem ser vividas e experimentadas aqui, embora imperfeitamente.

Elas começam a existir aqui na terra, vão crescendo até que na morte se dá um desabrochar pleno: ou para a frustração para aquele que se orientou negativamente e fechou-se à luz do sentido, ou para a plena realização para aquele que se manteve, permanentemente, aberto a toda realidade, especialmente para Deus .

Podemos perceber que a mensagem de Jesus está repleta de esperança na efetivação da salvação. Essa promessa é inseparável da Igreja, mesma que a transcenda. Nos seus membros, pelo testemunho de cada um, o povo de Deus vai anunciando a salvação prometida. Nisso, esconde o mistério eclesiológico da comunidade: “uma realidade humana feita de homens pobres e limitados, mas penetrada pela presença insondável e pela força do Deus uno e trino que nela resplandece, apela e salva” .

Assim, para o Concilio Vaticano II urge à Igreja envolver-se no mundo, a fim de que sua pregação e mensagem atinjam mais eficazmente as pessoas. Porque na perspectiva da fé os cristãos carregam as aspirações de um mundo melhor e a busca do sentido último de toda humanidade.



3. O “já” e o “ainda não” da plenitude da salvação na práxis cristã: o novo céu e a nova terra na superação de uma visão unilateral



É imperativo fundamental da Igreja, no Concílio Vaticano II, a urgência das mudanças das estruturas humanas atuais em todas as dimensões. Essa exigência brota da consciência da exigência do testemunho de Cristo. Segundo Karl Rahner, a busca pela nova terra é uma motivação que acompanha uma nova postura humana diante da vida, não somente na forma teórica, mas na atitude frente às questões da vida. Para ele a esperança escatológica deve criar um homem novo, movido por novas formas de relacionamentos, nas quais tenham o amor como base fundamental .

Com relação a nossa responsabilidade na construção do mundo novo “já” aqui na terra, é imprescindível salientar o avanço que a escatologia do Vaticano II trouxe para essa reflexão. Antes do Concílio, a teologia escatológica era compreendida por algumas correntes de pensamentos em duas formas: em alguns casos ela era vista como esperança futura desvinculada do tempo presente, numa relação transcendente e atemporal; em outros casos era bombardeada por pensamentos modernos que se afirmavam em construir uma esperança de vida feliz numa realidade puramente temporal. Ora, conforme o que tentaremos demonstrar, essas duas forma de ver a teologia escatológica não atingiram a totalidade da reflexão acerca da esperança cristã.

No primeiro caso, a escatologia era tratada como uma reflexão da esperança essencialmente para o fim dos tempos. E aí se pergunta: por que a terra, se o que vale é o céu? Essa concepção não coincide com o entendimento popular do fim dos tempos e muito menos com o pensamento clássico dos manuais de teologia dogmática. Essa ideia assemelha-se mais com o ideal da filosofia antiga, no tocante ao pensamento dualista, no qual o mundo é tido como algo desprezível e inferior. Assevera-se neste pensamento que a verdadeira vida se realiza no céu, e unicamente aí se instauram os verdadeiros valores. A vida neste mundo é considerada pejorativa, punitiva, como tempo de provação . Segundo L. Boff, a religião, por sua vez, assumia uma função limitadora e castradora de sentimentos e ações pessoais. As visões do inferno com seu fogo devorador amedrontavam mais que cooperavam para uma vida saudável diante de Deus .

Assim, toda esperança era posta na vida após a morte, pois nada se esperava daqui: tudo era para depois desta vida. Na teologia, essa concepção se traduziu numa visão alienante do Reino de Deus. Este Reino projetava-se para o futuro, sem muita inserção na história atual. Aguardava-se o irromper dos céus, da renovação de todas as coisas em uma dimensão extraterrena. Esse ideal deu origem a muitos movimentos carismáticos ao longo da história, que defendiam essa radicalização da escatologia cristã. Esses movimentos anunciavam a esperança dos oprimidos deste mundo como prêmio no céu. Entre eles podemos destacar como ilustração os valdenses, os albigenses, os hussitas, os seguidores de Joaquim de Fiore, entre outros . Para todos eles, o fundamental era a salvação da alma, não importando o corpo e, por conseguinte, a transformação do mundo não pertencia ao quadro de suas preocupações fundamentais.

A outra forma de conceber a teologia escatológica era colocar toda atenção na terra, sem lançar um olhar atento ao céu. Essa concepção tratava do céu como lugar alienante e sem sentido, o que vale é transformar o mundo. O axioma é não o céu e sim a terra! Muitos pensadores enveredaram por esse caminho e formaram um verdadeiro exército contra o céu. Entre eles destacam-se L. Feuerbach e F. Nietzsche. L. Feuerbach afirmava que “Deus é o espelho do homem” e que a religião está no relacionamento do homem consigo mesmo. Negar o mundo em detrimento do céu era negar-se a si mesmo . Nessa mesma linha encontramos o pensamento, daquele que foi um dos maiores oponentes da esperança escatológica, a saber, F. Nietzsche, que conclamava os homens a permanecer fiel a terra e não acreditar em esperanças supraterrenas . Para ele o que vale é a vida presente. O homem é o seu hoje e sua esperança está em si mesmo.

Essa concepção que nega o céu em detrimento da terra, mesmo trazendo enormes e consideráveis avanços para a humanidade, não resolveu as questões fundamentais acerca do sentido da vida e do destino deste mundo. Porque o ser humano, por mais que negue sua essência, jamais pode separar-se dela. Ele é um ser da transcendência, e nada neste mundo o satisfaz plenamente. Nem mesmo a alta tecnologia do mundo pós-moderno pode oferecer o sentido última de sua vida. Segundo L. Boff “a terra clama pelo céu, como por sua plenitude”.

Então, a saída é construir um raciocínio no qual se conflua a busca pelo céu como fundamento último da existência sem, no entanto, descuidar da transformação e do avanço deste mundo, tornando-o melhor em todos os aspectos. A ideia é, portanto, criar um discurso escatológico que valorize a terra como lugar de vivência, mesmo que imperfeitamente, da esperança do Reino. O Reino de Deus não é uma realidade totalmente alheia ao nosso mundo, nem tampouco é este mundo. Essa nova realidade, na verdade, não é um outro planeta totalmente novo, mas é esse nosso, totalmente renovado, onde o senhorio de Deus esteja acima dos poderes e força individuais. Portanto, a esperança escatológica que leva a convicção da salvação prometida, não se pode alcançar somente com o avanço deste mundo, com a libertação das estruturas mundanas, com o enriquecimento dos países pobres e com o fim da miséria, mas, também, com a consciência de que tudo está voltado para Deus, e que para Ele tudo converge. Por outro lado, uma salvação que não liberta das estruturas opressoras, que não promova a vida, que não favoreça a dignidade da pessoa, que não alargue as relações de justiça, paz e amor entre os homens, dificilmente encontrará relevância para humanidade, sobretudo, para os povos que vivem em lugares onde a vida é desrespeitada. O Concílio já deixou bem claro que a esperança escatológica não deve diminuir nosso compromisso com este mundo, ao afirmar que: “a importância das tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes reforça com novos motivos a sua execução” .

A Igreja deixa transparecer na sua doutrina escatológica que a esperança no céu é um motivo a mais para vivermos os sinais do reino aqui nesta experiência terrenal. O Concílio exorta os cristãos, cidadãos de ambas as cidades, a que procurem cumprir fielmente os seus deveres terrenos, guiados pelo Espírito do Evangelho. E diz:

Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, mas que vamos em demanda da futura, pensam que podem por isso descuidar dos seus deveres terrenos, sem atenderem a que a própria fé os obriga ainda mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um .

A mentalidade de que a esperança escatológica não tem vínculo nenhum com a vida presente está mais ligada à compreensão filosófica da fé do que com o pensamento bíblico e patrístico. É por isso que encontramos, por diversas vezes, nas notas de rodapé do sétimo capítulo da Lumen gentium mais citações bíblicas e patrísticas do que pensamentos filosóficos sobre o assunto. Tanto a teologia bíblica, quanto o pensamento patrístico estão mais próximos do ideal que une a esperança futura com o compromisso com a vida, pois tanto na tradição bíblica como na patrística, o destino do mundo está, de certa forma, presente nas decisões tomados na vida concreta. Por isso o Reino não começa lá no pós-morte, mas aqui, e plenifica-se no céu. “A felicidade que na terra gozamos, o bem que fazemos e as alegrias que saboreamos no dia a dia da existência são já vivência do céu, embora sob forma ambígua e deficiente” .

A vitória do amor sobre o ódio, a relação afetuosa que conseguimos vivenciar é o “já” e o “ainda não” da Esperança final, germinando na vida concreta de cada cristão. Os gestos de caridade e fraternidade que encontramos em tantas pessoas; a solidariedade dos grupos humanitários de ajuda são sinais da vitória do amor. Nestes e em tantos outros casos o céu começa ali e se abre ao infinito amor de Deus que ama gratuitamente.

O céu que começa na terra, não é fruto de especulações árduas ou fantasias alienantes. É a pontencialização daquilo que já na terra podemos e devemos experimentar. Pois sempre que na terra fazemos a experiência do amor, do bem, da fraternidade, da solidariedade e da partilha, “já” estamos realizando, em forma precária, mas real, a vinda do novo céu e da nova terra. O céu começa em cada um que se abre para Deus, no qual se encontra a plenitude do céu, do amor e da esperança. O germe do céu acontece, portanto, em todo lugar onde reina o amor, fraterno amor. Assim, a escatologia não é um sair do mundo, mas um estar no mundo de forma mais qualificada. Por isso, a escatologia torna-se esperança para os últimos deste mundo, presença salvífica, concretamente realizando a unidade indissolúvel entra o céu e a terra, a Igreja peregrina e a Igreja celeste.



4. A esperança escatológica como esperança para os últimos



A escatologia conciliar fala de uma viva esperança no cumprimento das promessas salvadoras de Deus para seu povo. Essa espera manifesta-se desde já como esperança para os últimos . Ela se traduz concretamente como esperança de ter um lugar para viver, ter um emprego digno, ter escola e lazer, como libertação sócio-cultural, como vida além da morte individual, em fim, como relacionamento com Deus, que proporciona a vida plena. Esse dinamismo da graça salvífica é esperança que se revela como vida bem sucedida, como história bem sucedida que culmina na visão beatífica .

Diante dessa expectativa cristã nasce a convicção de que a situação de morte, na qual vivem muitos povos, não tem a derradeira palavra; a ressurreição do Senhor é garantia da esperança dos pobres deste mundo. A fé na vida nova de Jesus é, para os oprimidos, a esperança realizada . A utopia da ressurreição, alcançada em Cristo, estende-se aos que se orientam por Ele. Por isso afirma o Concílio Vaticano II: tendo por certeza que ‘os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória futura que há de revelar-se em nós’ (Rm 8,18; cf 2Tm 2,11-12), esperamos com fé firme o cumprimento da ‘feliz esperança da manifestação gloriosa do grande Deus e Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo’ (Tt 2,13), o qual transformará o nosso corpo de miséria, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso... .

Mediante essa certeza, o cristão não pode perder de vista que “é um dever lutar contra o mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte; mas, associado ao mistério pascal, e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela esperança” . Essa convicção irrompe uma nova ordem nas relações com Deus e com as pessoas. Pois deve estar presente na vida concreta da comunidade cristã, mudando seu modo de agir e pensar. Porque o anúncio da Boa Nova da salvação não pode ficar somente como símbolo universal da esperança utópica do reino, sem considerar outras utopias dos homens e mulheres deste mundo. Porque só será cada vez mais esperança e Boa Nova quanto mais for concretamente libertação para os grupos que sofrem e são oprimidos .

Para Jon Sobrino, a Esperança escatológica é relevante à medida se personifica nas utopias da práxis cristã de cada batizado , que inclui, entre outras coisas, a superação da miséria e da exploração . Segundo o profeta Isaías, o reino se fará presente quando ninguém mais construir para que outro habite, nem plantar para que outro coma, quando cada um consumir a ‘obra de suas mãos’, ou seja, quando for superada a servidão . Lutar por um mundo onde não haja mais explorados, nem opressores, nem senhores nem escravos, é já instaurar o reino aqui, mesmo que de forma ofuscada.

No horizonte da esperança, na plenitude da salvação, a Igreja é, como já dissemos, o instrumento pelo qual Cristo manifesta essa promessa no mundo. Esperamos a salvação do mundo, e essa deve manifestar-se na ação de caridade e solidariedade para com os fracos e explorados . Caridade para com os excluídos, os sedentos de justiça, os famintos de pão material e espiritual e os abandonados do sistema sócio-econômico-religioso-cultural. Por isso, a pregação da Boa Nova desde já se realiza na efetivação destes sinais escatológicos na vida concreta dos homens e mulheres. Essa concretude, mesmo que parcial, é sentida na construção de uma sociedade da paz. Assim, a Igreja tem o dever de fazer avançar a causa de Cristo e tornar visível pela fé a esperança da paz duradoura. Onde isso acontece visualiza-se a tensão escatológica do “já” e do “ainda não” da plenitude da salvação. Nesse sentido, o anúncio da libertação, da promoção da vida e da defesa da dignidade das pessoas carrega um caráter eminentemente escatológico da fé, pois manifesta a esperança nas promessas de Cristo .



5. A renovação escatológica do mundo



A teologia conciliar centra-se na pessoa de Jesus e seu projeto do Reino de Deus, e ao mesmo tempo, também, faz referência ao papel do cristão, que precisa trabalhar e transformar as estruturas deste mundo . A respeito do papel cristão na renovação do mundo, o Concílio afirma no Decreto Apostolicam actuositatem: A obra da redenção de Cristo, enquanto por sua natureza tem como fim a salvação dos homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Por isso, a missão da Igreja não é apenas trazer aos homens a mensagem de Cristo e a sua graça, mas também permear e aperfeiçoar a ordem das coisas temporais com o espírito evangélico .

Por isso mesmo, compete a cada fiel, em seu estado de vida e no lugar onde estiver, promover a renovação do mundo pela sua consciência cristã e pela práxis evangélica. Pelo testemunho cristão de uma vida pautada nas exigências evangélicas, os membros da Igreja vão construindo a renovação escatológica do mundo. A mudança de mentalidade nas relações humanas com Deus e com os outros seres humanos é base dessa renovação escatológica.

A efetivação da renovação escatológica do mundo pressupõe perceber o senhorio de Jesus acima dos interesses pessoais, a lógica da vontade de Deus sobre os desejos humanos e a superação da desigualdade diante do individualismo. Assim, entendemos que a plenitude da realização do mundo em sua forma definitiva e escatológica precede uma práxis transformadora, que renove as relações entre os seres humanos em vista da salvação universal . É importante lembrar que o cristão é chamado, por sua vocação salvífico-universal, a participar da transformação escatológica do mundo, pois, pela sua práxis cristã, desenvolve, neste mundo, a obra que o Pai deseja, por meio do Espírito Santo

Um dos primeiros sinais de renovação escatológica do mundo é a busca pela libertação de todo tipo de opressão. O clamor por libertação atravessa hoje o mundo inteiro. A libertação é uma grande bandeira de todos os que acreditam na plenitude da salvação. Porque é quase impossível falar de esperança e plenitude de salvação para quem vive, terminantemente, sob o jugo da opressão e da tirania do pecado.

A situação de morte causada pela injustiça social e pela exploração econômica é uma afronta à Esperança escatológica. Os homens sofrem pela opressão econômica gerada pelo próprio homem e clamam por justiça social. Eles sofrem pela alienação cultural que se traduzem em racismo e preconceito, gerando uma verdadeira luta de desigual, marcada por uma vida, muitas vezes fútil. Sofrem, ainda, pelo vazio de uma existência sem sentido último, produtora de uma sociedade hedônica. Esses sinais do antirreino são obstáculos que urgem superação dentro da cultura cristã. A renovação escatológica do mundo implica, portanto, um grande processo de libertação que começa pelo respeito às culturas, pela valorização dos pobres e o fim da opressão aos empobrecidos .

Como ensinam os bispos da América Latina, a renovação do mundo é em primeiro lugar uma ação do Espírito Santo, que Deus derramou no coração de cada cristão . Por isso, diziam eles em Puebla: “A renovação dos homens e consequentemente da sociedade vai depender, em primeiro lugar, da ação do Espírito Santo de Deus. As leis e estruturas deverão ser animadas pelo Espírito que vivifica os homens e faz com que o Evangelho se encarne na história” . Esse Espírito impulsiona os fiéis a construírem aqui as condições para o desenvolvimento histórico do Reino. A salvação pregada na evangelização concretiza-se em libertação das forças contrárias à plenitude da vida.

Assim, a renovação escatológica do mundo pressupõe a urgente transformação do homem e das várias estruturas humano-sociais que integram a sua existência. Essa renovação escatológica urge emergir um homem novo, marcado pela busca da caridade perfeita. Pois o Verbo de Deus ensina que a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor.

E se alguém quer saber de que maneira se pode superar esta situação miserável, os cristãos afirmam que todas as atividades humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor próprio desordenado, devem ser purificadas e elevadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo .

Para K. Rahner, pelo amor o cristão pode apresentar ao mundo um caminho de transformação e revitalização. A união pelo amor gera uma família de irmãos que podem lutar mais eficazmente contra o espírito do egoísmo possessivo, do hedonismo e tantos outros problemas que empalidecem a visão e a presença da salvação .

É importante nunca esquecer o que o Concílio indagou sobre a índole escatológica da Igreja, quando salientou que essa mesma tensão escatológica conduz os cristãos a construírem já, com obras de caridade, as estruturas do mundo novo. Assim, entendemos que “a prometida restauração, que esperamos, começou já em Cristo, foi impulsionada com a vinda do Espírito Santo, e continua por meio da Igreja, que nos faz descobrir na fé o sentido da própria vida temporal” . E o Concílio, ainda, diz que “à medida que vamos realizando, com esperança nos bens futuros, a obra que o Pai nos confiou no mundo, vamos operando nossa salvação”. Portanto, é exigência de uma vida autenticamente cristã buscar a renovação deste mundo por meio da ação evangelizadora.

A renovação escatológica do mundo é antecipação do futuro de Deus para o homem e para esse mundo. A realização dessa vida nova está em processo, pois, como dissemos acima, o Espírito de Deus caminha conduzindo cada pessoa que se deixa tocar pela plenitude da graça. Quem recebeu o penhor do Espírito e vive por meio dele, já participa dessa nova realidade e pode esperar que, em si, o que foi iniciado, por meio do batismo, atingirá a sua consumação. Todavia, essa consumação se dará à medida que cada um colaborar com a obra do Reino, a fim de que seja prosseguido o que teve começo. Pois, “as primícias do Espírito são início de salvação para a existência corporal e de convivência (cf. Rm, 8, 23). Onde os homens se deixem determinar pelo poder-de-vida de Deus consuma-se a existência convivente e social, vai-se tornando presente a realidade da Ressurreição” .

A renovação escatológica do mundo rega uma cultura de paz, porque vivendo num tempo de graça “já” experimenta os frutos da salvação. A paz e concórdia como veremos abaixo são mais outros sinais plausíveis da vida nova ao qual o mundo está chamado a caminhar. Por isso, a paz é sinal da nova terra que sonhamos possuir plenamente um dia.



6. A promoção da paz como sinal da nova terra



Os cristãos, vivendo no tempo da Igreja, estão imerso na tensão escatológica, própria deste período, pois vivem entre a primeira vinda de Cristo, na fraqueza da carne, e à espera do advento da Parusia do Reino. Neste ínterim, são no mundo testemunhas do Senhor ressuscitado . Para os padres conciliares, os cristãos são no mundo um sinal do Deus vivo os quais devem alimentar com seus frutos espirituais a sociedade sonhada por Jesus para todas as pessoas. Assim, se lê que “todos juntos, e cada um na condição que lhe é peculiar, devem alimentar o mundo com os frutos espirituais (cf. Gl 5,22) e difundir nele o espírito do qual são animados àqueles pobres, mansos e pacíficos que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cf. Mt 5,3-9). Em outras palavras ‘o que a alma é no corpo, isto sejam no mundo os cristãos’” .

Com esse texto o Concílio quis deixar evidente que o papel do cristão na vida do mundo não é passivo, mas ativo. Os padres com alusão ao pensamento patrístico da Carta a Diogneto, nº 6 repõem o compromisso cristão, como elemento necessário à visibilidade da índole escatológica da Igreja. Porque o cristão precisa demonstrar ao mundo a razão da sua esperança. Neste contexto a paz é uma das formas eficazes de acolhida da salvação cristã.

Outro padre da Igreja salientou que o cristão busca a paz como herança de Cristo. “O senhor, já próximo à Paixão, entre outros preceitos e ensinamentos salutares, acrescentou a seguir: ‘eu vos entrego a paz, eu vos dou a minha paz’. Esta é a herança que nos deixou. Todos os dons e todos os prêmios das suas promessas estão incluídos nisto: a inviolabilidade da paz” .

O cristão, segundo São Cipriano, deve ser um pacificador. Para ele, a paz é a bandeira de todo aquele que abraça a vida nova em Cristo. Essa paz gera a concórdia desejada por Deus na vida das comunidades e das pessoas, individualmente, revelando a presença do Reino “já” acontecendo concretamente. A inviolabilidade da paz nos faz sonhar com uma sociedade cujas questões sejam resolvidas mediante o amor e não a violência; cuja tolerância não seja apenas uma questão de pauta de reuniões internacionais, mas seja algo efetivo na vida dos países e dos grupos. Daí acreditarmos que a paz desejada por Cristo não passa pelos mísseis, fuzis, bombas nucleares ou em guerras preventivas. A paz é fruto da tolerância, da concórdia, da harmonia, da atitude de respeito, acolhimento, solidariedade, partilha, justiça e fraternidade. Enquanto se empreender a paz pela violência, somente ofuscaremos o ideal da plenitude da Esperança. Por isso mesmo, é vergonhoso que países inerentemente cristãos, nos quais a paz deveria ser o imperativo relacional, se veja tanta violência, morte, desigualdade e injustiças de todas as formas. A renovação escatológica do mundo pressupõe que as situações de morte sejam abolidas de seu meio e a paz reine entre as pessoas.

Portanto, em atos concretos esse “já” e “ainda não” da plenitude da Esperança da salvação potencializa cada fiel de Cristo a promover a concórdia e a fraternidade mundiais. No nível das relações pastorais, a paz depende do fim da visão de serviço pastoral como título de poder, da superação inveja e da falta do acolhimento. Sem abertura a esses gritos espalhados pelos rincões das comunidades católicas não se construirá essa sociedade eclesial da paz.

Este novo ordenamento no qual a salvação escatológica vai acontecendo, somente será sinal da paz do reino quando os homens se reconciliarem como filhos e filhas de Deus e herdeiros da mesma promessa salvadora. A renovação escatológica do mundo presume esta consciência de Deus, que espelhando na filiação divina constroem juntos um mundo mais repleto de Deus. O fiel sabe que seu destino encontra-se na realização do mistério de Cristo e, por isso, mesmo se configura ao Jesus da paz e da reconciliação.

Um plano pastoral que deseja superar uma situação de dificuldades e desafios deverá colocar os olhos fixos na vivência do amor, pela construção da paz e da harmonia entre os irmãos. Porque quem quiser ser o maior deve tornar-se o servo de todos e quem quiser ser o primeiro torne-se o último. Os conflitos na pastoral são inevitáveis, mas o amor que nos impele é maior que todas essas coisas. A vida em Cristo nos impulsiona ao amor efetivo e afetivo, portanto à caridade. Se nós que somos da pastoral não vivemos isso, como podemos ser sinal do Reino Cristo no mundo? O nosso testemunho é a garantia que nossas palavras revelam a verdade de Deus.

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Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C) Um homem vem a Jesus pedindo que diga ao irmão que reparta consigo a herança. Depois ...