DOUTRINA SOCIAL DA
IGREJA
ÍNDICE
Siglas
Nota prévia
A abrir
I. A história da Doutrina Social da
Igreja
As origens da Questão Social e da
Doutrina Social da Igreja
Depois de Leão XIII
As novas realidades
A Doutrina Social da Igreja e sua
evolução
Depois de João XXIII
II. Enquadramento teológico da Doutrina
Social
A analogia da Incarnação
Ir às causas da pobreza
E as Comunidades?
III. Algumas questões particulares
1. A universalidade da Questão Social e
a ONU
2. Uma muito breve referência à família
3. O mundo da economia
4. Economia ou política: de quem a
primazia?
5. As leis fiscais
6. Os sistemas económicos
6.1. O comunismo marxista e
colectivista
6.2 O capitalismo liberal
6.3 Economia social de mercado?
7. O mundo da pobreza
7.1 Uma autoridade mundial velando pelo
Bem Comum
7.2. O mundo da pobreza, uma estrutura
de pecado
7.3. As vítimas da pobreza clamam pela
justiça de Deus
7.4. Dizer "Deus" é escutar o
clamor dos pobres
8. A ecologia
9.
A política, a moral, o direito e a fé
10. A democracia
10.1. A fundamentação das leis civis
10.2. A ética civil
10.3 Que fazer numa democracia às leis
injustas?
11. Os Direitos do Homem
11.1. As quatro notas dos Direitos do
Homem
11.2. A fundamentação dos Direitos do
Homem
11.3. Os direitos de 1º grau
11.4. Os direitos de 2º, 3º e 4º graus
A fechar
Siglas
utilizadas
CA - Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II (1991)
DSI - Doutrina Social da Igreja
ES - Encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI (1964)
GS - Constituição Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II (1965)
LE - Encíclica Laborem Exercens, de João Paulo I (1981)
LG - Constituição Lumen et Gentium, do Concílio Vaticano II (1964)
Medellín
1968 - 2ª Reunião da CELAM -
Conferência Episcopal latino-americana - realizada em Medellín, na Colômbia, no
ano de 1968
MM - Encíclica Mater et Magistra, de João XXIII (1961)
OA - Carta Octogesima Adveniens, de Paulo VI (1971)
PNUD - Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento
PP - Encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI (1967)
PT - Encíclica Pacem in terris, de João XXIII (1963
QA - Encíclica Quadragesimo anno, de Pio XI (1931)
RH - Encíclica Redemptor Hominis, de João Paulo II (1979)
RN - Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII (1891)
SRS - Encíclica Sollicitudo rei socialis, de João Paulo II (1987)
Nota
prévia
Desde que, em 1995-1996, procedi a uma
catequese sistemática sobre a Escatologia aproveitando para tal a homilia da
celebração dominical, cometi o propósito de fazer um esforço semelhante no
respeitante à Doutrina Social da Igreja. A oportunidade surgiu em 2002, com o
aproximar-se do 40º aniversário da encíclica Pacem in terris de João XXIII, e cumpriu-se de 6 de Outubro de 2002
a 20 de Julho de 2003.
Sem tirar nem alterar nada da Liturgia
de cada domingo, utilizei a homilia para este fim, adaptando-me, como me foi possível,
a tempos tão diferentes como são o Advento, o Natal ou mesmo a Páscoa.
Pediram-me, na Comunidade da Serra do
Pilar e de fora, pusesse em forma de caderno esses textos. Aqui estão,
reordenando-os o melhor possível mas não na sequência exacta em que foram sendo
proferidos. De seguida, transcrevem-se alguns textos de apoio, nomeadamente do
Magistério, que foram utilizados na oração semanal da Comunodade.
Como no fim se explicita, serviram-me
de guião nesta reflexão, os apontamentos escolares, depois publicados, do Prof.
Luis González-Carvajal Santabárbara, do Intituto Superior de Pastoral de
Madrid.
Arlindo de Magalhães, presbítero
A abrir
Eleito Papa em Outubro de 1958, João
XXIII anunciaria inesperadamente a sua decisão de convocar um Concílio ecuménico
em 25 de Janeiro de 1959. Mas praticamente um ano e meio antes de este se
reunir em primeira sessão (em Outubro de 1962), o Papa publicaria (nos 70 anos
da Rerum Novarum de Leão XIII) uma
encíclica - a Mater et Magistra - em
que, não se distanciando ainda muito da linha reformista tradicional, deixava
já um claro apelo a todos os povos no sentido da justiça e do respeito pela
liberdade de consciência.
Terminados, porém os trabalhos da 1ª
sessão do Concílio que haviam decorrido entre Outubro e Dezembro de 1962, tendo
tomado conhecimento da proximidade do seu fim e esperando dar desse modo uma
orientação eficaz aos trabalhos conciliares posteriores, publicaria menos de
dois meses antes da sua morte (viria a morrer em 3 de Junho de 1963), a
encíclica Pacem in Terris, datada de
Abril de 1963.
É este o primeiro documento pontifício
que se dirige não apenas aos bispos e Igrejas de todo o mundo, mas também
"A todas as pessoas de boa vontade".
Esta encíclica teve um acolhimento
entusiástico, tanto no bloco ocidental como no comunista de Leste. João XXIII
era já conhecido como um homem sinceramente preocupado com a política dos dois
blocos da guerra fria, e empenhado com o degelo dos antagonistas, homem sem
cálculos nem segundas intenções, o que, para o tempo e para um eclesiástico,
era absolutamente novo. Ele tinha vivido de 1925 a 34 em Sófia (Bulgária),
depois em Istambul e posteriormente ainda em Atenas, antes de ter sido Núncio
em Paris, onde enfrentara a tarefa difícil de substituir a parte importante do episcopado
francês que se aliara ao regime colaboracionista de Vichy, e de cuidar se
tratassem com humanidade os reféns alemães retidos em solo gaulês.
Segundo um jornal de esquerda do tempo,
João XXIII renunciou decididamente à nostalgia de uma cristandade de tipo
medieval de que os seus predecessores não haviam conseguido libertar-se
completamente. Ele percebeu que a concórdia entre as nações não estava já
dependente, como no passado, do que o Vaticano dissesse ou fizesse. Mas
acreditava com optimismo nas possibilidades da natureza humana, bem como na
capacidade de a família humana colaborar na construção de um mundo melhor e,
desde logo, mais justo. Vendo tudo à lupa - diz um crítico - não há nenhum
princípio novo nesta Encíclica, mas sim um enorme "bom senso à beira da
genialidade". A Igreja e o próprio Papa surgiram assim aos olhos de um
mundo espantado, como muito mais preocupados com os problemas reais dos homens
do que em geral se pensava.
Mês e meio depois, em 3 de Junho
seguinte, estávamos em 1962, "il papa buono" morria em Roma. Toda a
humanidade, muito para lá das fronteiras da catolicidade e inclusive do
cristianismo, se sentiu profundamente atingida. Esta comoção, de que eu ainda
me recordo em parte, podia ser ilustrada com muitos exemplos, desde a bandeira
da ONU a meia haste em Nova Iorque, às delegações moscovita, judaica, muçulmana
ou budista presentes no seu funeral.
A principal razão desta unanimidade no
luto pode ser resumida pelo que, dele, escreveu um jornal conhecido pelo seu
posicionamento anticlerical: "João XXIII era o que muitos cristãos chamam
um santo. E o que todos chamamos um homem".
Efectivamente, antes mesmo de ser
publicado qualquer documento do Concílio Vaticano II (o primeiro, sobre a
Liturgia é de Dezembro de 1963), a encíclica Pacem in Terris foi o que se chama uma verdadeira lufada de ar
fresco.
E desde logo por esta afirmação
lapidar: "Numa convivência humana bem constituída e eficiente, é
fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa: isto é, natureza
dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo
direitos e deveres que emanam directa e simultaneamente da sua própria
natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais,
invioláveis e inalienáveis".
Afirmação lapidar, dizia, a que se
segue depois a lista de direitos e de deveres. Universal e sem excepções de
qualquer tipo. Porquê então uma prática tão diferente? Porquê então direitos e
deveres depois negados na prática? Porquê então, dum lado e doutro, se fala só
de direitos ou só de deveres? Esta é a chamada "questão social",
presente a todo o tempo, mas agravada com as novas situações económicas e
sociais geradas com a revolução industrial a partir sobretudo do séc. XIX.
A Igreja que, pensava-se, tratava só
das almas, teve dificuldade em entrar na questão. Fê-lo quase só com o Papa
Leão XIII, em 1891, com a célebre encíclica Rerum
Novarum ("As Novas Realidades"). De então para cá, esta reflexão
originou já um caudaloso rio a que se chama a "Doutrina Social da
Igreja".
I. A
história da Doutrina Social da Igreja
As
origens da Questão Social e da Doutrina Social da Igreja
A Revolução Industrial havia originado
o aparecimento de um mundo novo. Mas a Igreja só tarde o percebeu. E com o
movimento operário dele surgido aumentaram as dificuldades.
A classe operária, tal como a
indústria, nascera à margem da Igreja, num contexto essencialmente
materialista, num clima de concorrência implacável e de egoísmo criado, em
parte, pela Revolução Francesa que tinha promovido a liberdade (no caso, da
produção e do comércio). Surgiriam depois os dogmas da não intervenção do
Estado nestes sectores e do carácter nefasto dos corpos intermédios
(corporações ou sindicatos) a controlarem a liberdade individual. Os operários,
em geral camponeses de origem (logo cristãos), emigrados para as cidades, sem
qualquer tipo de direito ou de protecção, esmagados pela estrutura da grande
indústria que lhes negava na prática a humanidade e limitava ao máximo os
tempos livres, tornando-lhes impossível a instrução e a reflexão, que os
desenraizava separando-os da família e da sua cultura tradicional, que os
afastava inteiramente da Igreja por absoluta incompatibilidade com a pastoral
paroquial, o que vinha já muito de trás, diga-se, (os operários) encontraram nos
homens da Igreja uma absoluta incapacidade de entenderem o seu drama e mesmo o
que efectivamente se estava a passar.
Espanta-nos hoje que em 1841 um padre
francês pudesse escrever assim: "A desigual repartição das riquezas é
necessária para manter a felicidade sobre a Terra: o pobre trabalha para o
rico, o rico assiste o pobre, e a harmonia social resulta desta diferença dos
seus membros, tal como a do órgão da desigual grossura dos seus tubos".
Não havia ainda uma sensibilidade desabrochada para os problemas levantados
pela Revolução Industrial. Mesmo assim, houve algumas reacções surgidas do
campo católico: mas foram todas no sentido de minorar situações concretas e não
no de ir às causas reais dos problemas.
A sociedade industrial dividia-se
digamos que em duas barricadas: dum lado a dos proprietários das empresas
(diziam-se os capitalistas, os que tinham o capital e o investiam dessa
maneira), do outro a dos que apenas possuíam a sua força de trabalho (e não
encontravam onde empregá-la ou então tinham de vendê-la por qualquer preço e em
condições para nós hoje abjectas e impensáveis). Isto originava como que duas
humanidades diferentes: dum lado o capitalismo, industrial e financeiro, feroz
e selvagem, posso, quero e mando, se não queres vai-te embora que há muitos a
quererem; do outro uma enorme massa assalariada, o proletariado, que tinha de
acomodar-se ao primeiro trabalho que encontrasse, fosse o salário que fosse, 18
horas por dias, 7 dias por semana, e alguns poucos anos por vida, sem direitos
nem segurança, sem qualquer protecção legal, sem futuro. Entre estes dois
grupos, a separação era absoluta, e não só no interior das fábricas. A parte
mais fraca, a dos trabalhadores, não tinha acesso à instrução, não participava
na vida política, não tinha condições de saúde, não se lhe fazia justiça no
salário, não tinha habitação condigna, não tinha direitos nem protecção legal…
Os interesses de uns e de outros eram
absolutamente inconciliáveis. Aos patrões interessava manter os salários tão
baixos quanto possível, enquanto que os trabalhadores pura e simplesmente
tinham perdido toda a dignidade humana, oprimidos por uma "miséria
imerecida" (Leão XIII). Restava-lhes como escape a taberna e o prostíbulo.
E os salários eram tanto mais baixos
quanto maior a massa dos que se aglomeravam à porta das fábricas,
desempregados, a tentar vender, a qualquer preço, a sua força de trabalho. A
pauperização tornou-se assim um dos grandes fenómenos do século XIX.
Foi aqui que começou a levantar-se um
sonho: a palavra Socialismo serviu
para o dizer. O cristianismo era incapaz - pensava-se - de obstar a este estado
de coisas. O socialismo utópico, o humanismo ateu e o socialismo científico
construíram entretanto o mito da sociedade socialista de dimensão universal,
destruídas as classes e implantada a ditadura do proletariado.
É verdade que por toda a parte a Igreja
multiplicava obras de caridade para socorrer os novos pobres que eram os
proletários do capitalismo (um nome célebre desta época é Ozanam [1813-1853], recentemente beatificado, que, inspirado em
Monsieur Vincent, depois S. Vicente de Paulo, criou as Conferências que levam o
seu nome). Faltava-lhe no entanto imaginar a novidade, ir à raiz do mal e
saltar as barreiras paralisantes de uma moral estritamente individualista.
Tentativas houve-as, mas tímidas: seria
possível conciliar, tal como fizera Lamennais (1792-1854) relativamente ao
Liberalismo, a Revolução, agora industrial, com as exigências da Justiça e da
Caridade, ou o progresso industrial e económico era mesmo contrário,
antagónico, ao Evangelho? Chegou-se a pensar que não: que Evangelho e progresso
eram inimigos.
Tudo somado, o catolicismo social
dos anos 70 do século XIX não passou do esforço de um punhado de homens
pertencentes à classe dirigente, de audiência limitada junto dos operários. As Corporações e os Círculos Católicos de Operários foram já uma tentativa de encontro
da classe dirigente com os operários e proletários. No entanto, se bem que
tenham conseguido resultados notáveis, o espírito paternalista destas
iniciativas, mais que preparar o operário para a Luta a travar e a vencer,
funcionava como uma espécie de travão, o que não raro conduzia a que se
entregasse ao diabo a Justiça e a Verdade. A verdade, porém, é que "Uma
andorinha fez a primavera".
O Papa
Leão XIII (1878/1903), no fim do século, já se clamava que a Igreja não
podia continuar calada perante tanta injustiça, iniciou a aproximação da Igreja
com todas estas "Novas Realidades" (Rerum Novarum, encíclica de 1891) do Mundo Moderno, levando a sério
o mundo do trabalho e as concepções econômicas vigentes ao seu tempo. Leão
XIII, aberto à criatividade, não já manifetado como os seus antecessores pela
problemática política, compreendeu muito lucidamente o que era passível de
mudança e o que era permanente. E por isso defendeu: a primazia da Pessoa sobre
as coisas e a submissão do capital à dignidade e direitos do trabalho; o
direito de todos à propriedade como instrumento de promoção humana e garantia
da responsabilidade e autonomia da pessoa; o direito de associação; a vocação
de todos, indivíduos e classes, à construção de uma sociedade justa e fraterna,
em que as diferenças fossem complementares e não motivo de conflito; o papel da
Igreja e do Estado em toda esta questão, cada qual no seu lugar; e o papel da
iniciativa individual e associativa que devia ter em conta tanto o Indivíduo
como o Bem Comum da sociedade.
Só que, para dizer isto, utilizou
muitas palavras que soavam a herético: trabalho e capital, patrão e
assalariado, a terra dada a todos, salário justo, conflito social, direitos e
deveres, direito de associação, indivíduo e bem comum, a Pessoa como sujeito de
direitos inalienáveis.
Mas, com esta intervenção, Leão XIII
arranjou-a boa! E não faltou na Igreja, quem, com bispos à frente e tudo,
rezasse pela conversão do papa. Que estava maluco e velho!
Depois de
Leão XIII
A encíclica Rerum Novarum de Leão XIII teve tal importância dentro e fora da
Igreja Católica que rapidamente se transformou numa referência quase mítica,
apesar - repito - das discordâncias que suscitou no seu interior.
Tanto assim que os Papas posteriores
passaram a celebrar os seus aniversários quase de década em década, se
excetuarmos os dois primeiros sucessores do papa Leão, mais preocupados, um -
Pio X - com as reformas de ordem pastoral interna, e o outro - Bento XV - com o
drama desse "inútil massacre" que foi a 1ª Guerra Mundial.
Assim, ao passarem os 40 anos da Rerum Novarum, Pio XI publicaria a
encíclica Quadragesimo anno (1931);
no cinqüentenário (1951), Pio XII leria aos microfones do Vaticano uma célebre
Radiomensagem (A solenidade do
Pentecostes); nos 70 anos, João XXIII daria a conhecer a encíclica Mater et magistra; nos 80, Paulo VI
endereçaria ao presidente do Conselho de Leigos e da Comissão Justiça e Paz, uma
Carta célebre, a Octogesima Adveniens; no
90º aniversário Joâo Paulo II publicaria a encíclica Laborem exercens, e no centenário a Centesimus annus.
Entre estes documentos comemorativos,
digo assim, apareceriam entretanto outros. Para citar apenas alguns mais
importantes: a já referida encíclica Pacem
in terris de João XXIII (1963), a Constituição Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo Moderno, do Concílio
Vaticano II (1965), a Populorum
progressio de Paulo VI (1967), e a Sollicitudo
rei socialis de João Paulo II (1987), para além de vários outros (é preciso
mesmo não esquecer os que Pio XII dedicaria aos temas da Guerra - a 2ª Mundial
que corria no seu tempo - e da Democracia).
Dizendo doutro modo, a Revolução
Industrial provocava e continua ainda a provocar uma tal transformação de tudo,
a nível antropológico, civilizacional, social, cultural, econômico, político e
etc, que as suas conseqüências não paravam de se verificar. Palavras e
problemas que os nossos avós desconheciam de todo - democracia ou totalitarismo,
socialização e globalização, telemóvel ou computador, ecologia ou reforma
agrária, clonagem ou nuclear, etc, etc, logo ultrapassaram a primitiva e
praticamente única questão que motivou a encíclica de Leão XIII, os conflitos
entre trabalho e capital, entre patrões e assalariados. Por isso, pouco a
pouco, a reflexão do magistério católico foi assumindo todos os novos
problemas, e alargando cada vez mais o campo restrito da primeira encíclica.
A par, começou a desenhar-se uma nova
postura da Igreja perante todas estas realidades. Antigamente, na Igreja, havia
princípios julgados imutáveis e eternos com que se julgavam as novas
realidades. Claro que os julgamentos não eram ajustados nem corretos, porque as
realidades já não cabiam neles ou eram doutra galáxia.
Pouco a pouco, porém, começou a
perceber-se que, primeiro, havia que analisar a realidade, conhecê-la
bem, deitando mesmo mão de ciências auxiliares que, à partida, se pensava não
tinham nada a ver em com a Teologia nem mesmo com o Direito ou a Moral. A
seguir, era preciso ler essas realidades à luz do Evangelho. Claro que ele
não fala nem de sindicatos nem de globalização. Mas há valores evangélicos
universais (hoje, de resto alguns admitidos já nas legislações universais e
nacionais) sem os quais não nos entendemos; por exemplo: que não há homens mais
homens que outros homens (Leão XIII dissera da primazia da Pessoa sobre todas
as coisas e realidades, quaisquer que sejam). Finalmente, depois de
analisar a situação e de a julgar à luz do Evangelho, o agir (que é preciso ou
se pode fazer?).
Nascia assim o célebre método da
Revisão de Vida (ver, julgar e agir) criado no seio da pastoral operária,
assumido depois pela Acção Católica em geral, e que o Vaticano II consagraria
como método teológico e pastoral, desde logo ao afirmar que "as alegrias e
esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje são as alegrias e
esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo".
Pouco a pouco se foi, pois, edificando
um acervo de reflexão sobre a questão social - a DSI - nascida claramente com o
método da Revisão de Vida: à medida que os problemas e questões iam aparecendo,
era preciso vê-los, depois julgá-los, e finalmente traçar planos de intervenção
e intervir.
As novas
realidades
Torna-se fastidioso fazer uma lista das
novas questões que entraram na reflexão da DSI. Mesmo assim não deixo de citar
algumas, para fazermos todos uma ideia.
O mundo do Pio XI tinha portanto mudado
relativamente ao de Leão XIII: logo após a 1ª Guerra mundial fora a Revolução
russa, e em 1931 haviam passado apenas dois anos sobre o início da profunda
recessão econômica de 29. A par, nasciam as democracias européias. A luta de
classes estava agora politicamente enquadrada, em estados ou, no mínimo, em
partidos. Mas a vida dos trabalhadores, com algumas exceções, não tinha
melhorado (o socialismo de estado era uma realidade, o liberalismo econômico
cavara as suas teses, e as vias intermédias, de raízes mais ou menos
socialistas ou de inspiração cristã, não se conseguiam praticamente afirmar);
mas já se lançavam os fundamentos do que viria a ser a "cortina de
ferro". No meio disto tudo, o Papa formularia o célebre "princípio da
subsidiariedade", que depois haveria de ser aceite pela política e pela
sociedade, pela Igreja e sua teologia.
Pio XII conviveu a seguir com o
pesadelo da 2ª Guerra, atormentado por outro lado com a "possibilidade da
democracia". João XXIII não teve já receio de falar nem de socialização,
nem da diferença entre a ideologia (marxista), que "é aquilo que é",
e "as situações históricas em contínuo devir … portanto susceptíveis de
mudança", nem de - numa antevisão da globalização que havia de vir - de
apontar a "Paz na terra", não apenas no mundo do trabalho nem
simplesmente no mundo político.
Paulo VI iria ainda mais longe. A sua
preocupação estendeu-se às questões mais vastas do Desenvolvimento dos povos e
seu direito à independência política (autodeterminação), à separação cavada
entre os Países do Norte e do Sul do planeta, bem como a problemas recentes como
a urbanização ou a emigração. A par, retomaria a questão da evolução histórica
do marxismo formulada já por João XXIII, etc.
João Paulo II, vindo entretanto de um
regime marxista, marcaria desde logo o terreno, antes ainda da queda do Leste:
contrariamente aos seus antecessores que, digamos assim, favoreciam uma forma
modificada de capitalismo, afirmou com clareza logo na encíclica Laborem Exercens de 1981 que, tal como o
marxismo, "o erro do 'economismo' …, erro fundamental do pensamento,
também pode ser chamado um erro materialista, no sentido de que comporta,
direta ou indiretamente, a convicção do primado e da superioridade daquilo que
é material" sobre o Homem. Um e o outro - o marxismo e o capitalismo - são
dois graves "erros antropológicos". A esta luz releria as velhas
questões do trabalho e da sua dignidade, da Pessoa humana e da inviolabilidade
dos seus direitos, mas agora analisadas em contexto histórico absolutamente
novo.
Entretanto, caía o Leste, e as suas
repúblicas transformavam-se em democracias incipientes e inexperientes, cheias
de problemas e necessidades. A queda destas economias planificadas pelo Estado
traria a nu desastres impensados e problemas novos, do desemprego à fome. À
fome continuam a morrer os Terceiros e Quarto Mundos afogados nos montões de
lixo do desperdício do Primeiro, sabendo-se embora que há recursos financeiros
e técnicos para responder em apenas 10 anos às necessidades básicas de toda a
população mundial! E há ainda o esgotamento dos recursos naturais, a poluição, o
desastre ecológico.
Caídas as economias planificadas de
Leste, o Ocidente julgou-se um "todo o terreno": nós próprios
sofremos ainda as consequências deste logro. A falta de trabalho, o
envelhecimento da população, a emigração (legal ou ilegal) dos países pobres
para os ricos, os refugiados, a globalização e suas consequências, boas e má,
são por isso problemas dos nossos dias.
E a pergunta continua a ser a mesma: é
mesmo impossível organizar um mundo mais justo para todos?
A
Doutrina Social da Igreja e sua evolução
Podemos resumir a evolução progressiva
da DSI, de Leão XIII a João Paulo II, com um texto deste último, tirado da
encíclica Centesimus Annus:
"No início da sociedade
industrial, foi o 'jugo quase servil' que obrigou o meu predecessor a tomar a
palavra em defesa do Homem. Nestes cem anos, a Igreja permaneceu fiel a este
empenho! De fato, interveio nos anos turbulentos da luta de classes, a seguir à
primeira guerra mundial, para defender o homem da exploração econômica e da
tirania dos sistemas totalitários. Colocou a dignidade da pessoa no centro das
suas mensagens sociais, após a segunda guerra mundial, insistindo sobre o
destino universal dos bens materiais, sobre uma ordem social sem opressão e
fundada no espírito de colaboração e solidariedade. Depois reiterou
constantemente que a pessoa e a sociedade não têm necessidade apenas destes
bens, mas também de valores espirituais e religiosos. Além disso, tendo
verificado cada vez mais como tantos homens vivem, não no bem-estar do mundo
ocidental, mas na miséria dos países em vias de desenvolvimento onde padecem
uma condição que é ainda a do 'jugo quase servil', sentiu-se na obrigação de
denunciar essa realidade clara e francamente, embora sabendo que este seu grito
não será sempre acolhido favoravelmente por todos".
Por uma questão pedagógica, costuma
dividir-se este período de cem anos, no que respeita à DSI, em três épocas. A
primeira, desde Leão XIII até ao Concílio Vaticano II ( o tempo da chamada
"terceira via"); a segunda, abrangendo o Papa João XXIII e o Concílio
(a viragem conciliar); e a terceira, de Paulo VI a João Paulo II.
Efectivamente, no período que vai de Leão XIII a Pio XII, a então incipiente DSI,
como que tentou definir um modelo socio-económino a que, entre os abusos do
liberalismo (capitalista) e do socialismo em geral (e mais particularmente o
marxista), poderíamos chamar de "terceira via".
Foi de facto num mundo cavado pela
separação trabalho-capital, patrões-operários, liberalismo-socialismo, que a
DSI nasceu. O magistério papal assestou suas armas numa luta declarada ao
liberalismo, ao socialismo e a qualquer espécie de totalitarismo (económico,
político ou tecnológico).
Mas então, fora isto, que defendia a
DSI? Ficou a dignidade de toda e qualquer pessoa humana, e desde logo a do
pobre operário que nada mais possuía a não ser a sua força de trabalho, ficava
o Estado que, com legislação apropriada, não devia permitir que o capital
explorasse o trabalhador, ficava a defesa da iniciativa de proprietários e/ou
operários se reunirem para defender e mesmo reivindicar os seus direitos, e
ficava ainda a defesa do direito de propriedade privada embora destacando a sua
função social (na prática, a pequena courela do pobre assalariado que já então
só dava ervas porque o seu proprietário tinha que trabalhar entre 12 a 18 horas
na fábrica, era tão "propriedade privada" como a grandiosa fábrica do
capitalista que oprimia trabalhadores com salários de fome e condições
desumanas de trabalho, acumulando lucros & ganhos?).
Neste debate, mas sem o influenciar em
profundidade, Pio XI, na Quadragesimo
anno, introduziu algumas novidades. Em 1929, começara a grande crise
económica do sistema capitalista, cuja maior consequência foi o desemprego
generalizado. O Papa denunciaria a economia capitalista como
"horrendamente dura, cruel e atroz", condenando em absoluto que ela
atendesse apenas ao Lucro a qualquer preço. Quanto ao socialismo, distinguiria
entre a sua vertente mais violenta, o marxismo, e uma outra mais moderada que,
de há muito, dava pelo nome singelo de socialismo que, no entanto, devia ser
também rejeitado. É então que começa a definir-se com alguma clareza o que
atrás chamava a "terceira via", o corporativismo. A exemplo do que
sucedera na Idade Média, a sociedade organizar-se-ia melhor - sugeria a DSI -
através de organizações intermédias (entre o Estado e o indivíduo), de carácter
económico-social, criadas por livre iniciativa e não impostas (como nos Estados
fascistas), em que patrões e operários, se pudessem sentar à mesa à procura de
entendimento. Sindicato era ainda uma palavra proibida pela sua conotação
revolucionária ou marxista.
Pio XI formularia então o célebre
princípio da subsidiariedade (que depois a sociedade civil e a própria Igreja
consagrariam),
"… aquele solene princípio da
filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem
efectuar com a própria iniciativa e trabalho para o confiar à comunidade, do
mesmo modo, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que as comunidades
mais pequenas e inferiores podem realizar é uma injustiça, um grave dano e
perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade é coadjuvar os seus
membros e não destruí-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública ao
cuidado das associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a
absorveriam demasiado. Poderá, então, desempenhar mais livre e eficazmente o
que só a ela compete porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e
reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os
que governam de que quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as
várias associações, segundo este princípio de função subsidiária, tanto maior serão a autoridade e a eficácia sociais, e
tanto mais feliz e fecundo será o estado da nação" (QA).
À luz deste princípio se condenavam
todos os totalitarismos entretanto surgidos, o capitalista (só o capital tem
direitos), o marxista ("intrinsecamente mau", encíclica Divini Redemptoris de 1937), e o nazi
(encíclica Com viva inquietação, de
1937) e o fascista (encíclica Não temos
necessidade, de 1931).
Preparava-se entretanto a 2ª Guerra
Mundial. Em 1939, entraria em cena um novo Papa, Pio XII.
De facto, à morte de Pio XI, foi
escolhido como seu sucessor, menos de meio ano depois de se haver iniciado a 2ª
guerra mundial, o Papa Pio XII, um diplomata mais que um lutador, que assistiu
torturado aos problemas do seu tempo.
Dizem os historiadores que uma das
razões que levou os Cardeais a escolhê-lo foi o facto de ele, Secretário de
Estado que fora no tempo de Pio XI, estar perfeitamente a par da política
mundial, preparado portanto para mediar as partes em conflito com grandes
possibilidades de sucesso. Foi assim que, logo dois meses depois de ter sido
eleito, Pio tentaria reunir as 5 potências europeias directamente envolvidas (à
data) no conflito (Alemanha, Itália, Inglaterra, França e Polónia), na ânsia de
apressar o seu fim. Mas ninguém lhe ligou. Pode ter sido mesmo este o seu erro:
preparando a possibilidade de intervir como mediador, terá acabado por não
tomar posição clara contra nenhum dos campos. Muitos censuram hoje esta
política que visava manter o Vaticano acima da desordem, enquanto que os
princípios morais fundamentais levavam tratos de polé, muito mais que em 1914.
Digamos que este é o julgamento da História.
Se o conflito, uma vez iniciado, era já
de si tremendo, tudo se complicou entretanto com a entrada da União Soviética
na guerra. O Papa, consciente do perigo que representava para o mundo a vitória
do Eixo (nazismo e fascismo), pensava que pior ainda seria a vitória do
comunismo. Por isso não fez pública qualquer condenação contra o nazismo.
"O mal reinava no presente, ele reconhecia-o tanto como qualquer outra
pessoa e sofria com isso, mas o presente solicitava-o muito menos que o futuro.
O presente impossibilitou-o assim de fazer um apelo aos católicos alemães
contra o seu governo sem provocar um cisma e mesmo represálias, o que
enfraqueceria o nazismo e daria novas oportunidades ao comunismo" (F.
L'Huillier).
Foi por isso discreta a sua presença ao drama. Claro que, logo no início,
patrocinou ajuda às vítimas da guerra, tendo mesmo criado um serviço de
informações de exilados, deportados e refugiados. Mas foi sobretudo nas
sucessivas mensagens de Natal que no dia de Natal lia aos microfones da Rádio
Vaticano, então ainda uma novidade!, que exprimiu com nitidez e precisão o seu
pensamento sobre a necessidade de se dar origem a uma comunidade das nações
regida pela lei moral, denunciando as causas do conflito, insistindo nos perigos
do nacionalismo totalitário, e gritando pela necessidade de se trabalhar pela
supressão das chocantes desigualdades económicas entre as nações.
Na prática, Pio XII não deixou nenhuma
encíclica ou qualquer outro documento propriamente do âmbito da DSI. Foi nas
Radiomensagens que mostrou a sua atenção aos novos problemas do seu tempo, num
mundo em transformação, a Guerra numa palavra.
Saliento duas. Desde logo, a de 1941.
Num mundo em que "não se vê possibilidade de entendimento entre os
beligerantes, cujos recíprocos fins e programas de guerra parecem estar em
oposição irreconciliável", o Papa lançou "as bases de uma Ordem
nova" (título do documento) que "todos os povos anelam ver realizada
depois das provações e ruínas desta guerra": "Nada de agressões contra
a liberdade e vida das nações mais pequenas, … nem opressão das minorias
étnicas e das suas peculiaridades culturais, … nem açambarcamento injusto das
riquezas naturais por parte de algumas nações com prejuízo das outras, … nem
corrida aos armamentos, nem violação dos tratados, … nem perseguição da
religião e da Igreja". Praticamente no fim do documento, afirmava:
"Nós amamos - Deus nos é testemunha! - com igual afecto a todos os povos
sem excepção; e para evitar até a aparência de nos deixarmos levar por espírito
de facção, temo-nos imposto até agora a máxima reserva". Parecia adivinhar
a acusação que a História lhe faria!
Outra importante radiomensagem foi a de
1944 "Sobre a Democracia" ou tão só sobre a sua possibilidade:
"Ensinados por uma experiência
amarga, (os povos) opõem-se com maior violência aos monopólios de um poder
ditatorial, indevassável e intangível, e exigem um sistema de governo mais
compatível com a dignidade e a liberdade dos cidadãos. Essas multidões,
irrequietas, revolvidas pela guerra até nas mais profundas camadas, estão hoje
dominadas pela persuasão de que, se não tivesse faltado a possibilidade de
sindicar e corrigir a actividade dos poderes públicos, o mundo não teria sido
arrastado na voragem desastrosa da guerra; e que, a fim de evitar para o futuro
a repetição de semelhante catástrofe, é necessário proporcionar ao mesmo povo
garantias eficazes. Em tal disposição de ânimos, é de admirar que a tendência
democrática domine os povos e obtenha largamente o sufrágio e consenso daqueles
que aspiram a colaborar mais eficazmente nos destinos dos indivíduos e da
sociedade?".
Terminou entretanto a guerra. Pio XII,
homem de grande cultura, dedicaria outros textos a novas realidades. Poderíamos
falar da Mulher, cujo papel começava então a ser valorizado ("não é um
mero problema de ordem jurídica ou económica, pedagógica ou biológica, política
ou democrática", mas decorre do facto de "ela ser pessoa e, portanto,
ter a dignidade própria de pessoa, uma dignidade igual à do homem" - diria
no discurso Questa grande, de 1945).
Em 1953, falaria até na sua
radiomensagem de Natal "Sobre os perigos do Tecnicismo". Perante os
avanços da ciência e da técnica, que começavam então a ser espectaculares, o
Papa chamou a atenção para a sua ambiguidade: por um lado, vêm de Deus, mas por
outro podem originar graves danos espirituais - "o espírito técnico"
- e levar à despersonalização das pessoas, gerando angústia e criando problemas
no mundo do trabalho resultantes da automatização.
É curioso! Nada que, noutros âmbitos se
não viesse já a sentir e a denunciar, noutros âmbitos: "Supus, durante
muito tempo, que a ciência, só por si, poderia estabelecer entre os homens a
paz, a unidade… Pois bem, não. […] Veja os resultados práticos; que ganhou o
povo com isso? Um materialismo rasteiro, que, na verdade, carece de beleza…
que, sobretudo, é estéril… O que parece provar que o homem não vive apenas de
trabalho, de verdade. Precisa do seu domingo:
a fórmula pouco importa" (Martin du Gard - O drama de João Barois, Nobel da Literatura 1937).
Pouco a pouco chegávamos ao "nosso
tempo". O Cardeal Roncalli, futuro João XXIII, era já arcebispo de Veneza.
A eleição de João XXIII para a cadeira papal de Roma foi uma emoção que correu a
Igreja e o Mundo.
Nos anos 50 e princípios da década de
60, as fracturas Leste/Ocidente e Moscovo/Pequim, a par do despertar dos povos
colonizados para a independência, eram as grandes questões. Cada um destes
problemas tinha outros a si associados. A questão do armamento desequilibrava,
dum lado e do outro, as economias e gerava enormes bolsas de pobreza. As
cortinas "de ferro" e "de bambú" impossibilitavam o diálogo
de culturas num mundo, por outro lado, cada vez mais uma "aldeia
global". A Questão Social deixara de ser uma questão (a do mundo do
trabalho) para se alargar a todas as questões da sociedade, e passara de um
problema do Primeiro Mundo industrializado para se estender a todo o globo. E
cada vez mais se cavava a fractura entre o Norte e o Sul (no século XIX essa
distância era, entre a Europa e a África, de 1 para 3, sendo hoje da ordem de 1
para 76!).
Portanto, novos problemas que era
necessário assumir num tempo alargado a novos horizontes sociais e geográficos.
E rapidamente as velhas ideologias começariam a entrar em crise, deixando a realidade-real sem referências globais:
foi assim em Maio de 68 em França, em Abril de 74 em Portugal, na América do
Sul, ao longo da década de 80, com os "regimes de segurança" em toda
a América Latina, em 1989 com a queda do comunismo, e em todo este tempo com a
fuga das economias ao controle dos Estados.
Mal acabado de chegar (1958), João
XXIII publicaria (em 1961) a célebre Mater
et Magistra, 70 anos depois da Rerum
Novarum de Leão XIII.
Resumindo os ensinamentos dos seus
antecessores, introduziu nesta reflexão novos conceitos: o de Bem Comum
("o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem o
desenvolvimento integral da personalidade humana") alargado a todas as
nações, o de socialização (suas vantagens e inconvenientes, mas sempre um meio
importante para o desenvolvimento da pessoa), o da justa distribuição do
produto social, e o da participação dos trabalhadores na vida das empresas. Ao
mesmo tempo denunciou as grandes desigualdades (entre ricos e pobres, entre o
mundo rural e urbano, entre países desenvolvidos e sub-desenvolvidos) e
condenou o neo-colonialismo.
Seria, entretanto, a Pacem in Terris (1963) a sua coroa de
glória.
A Pacem
in Terris
O mundo a que João XXIII se dirigiu
nesta encíclica encontrava-se em profunda desordem. O séc. XX começara com
altos níveis de expectativa mas, na década de 60, a humanidade vivera já duas
guerras mundiais e tivera igualmente de enfrentar vários e devastadores
sistemas políticos totalitários. Para além disso, dois anos antes da encíclica,
havia sido levantado o muro de Berlim, a separar dois mundos antagónicos,
regidos por regras e sistemas de vida contrários que parecia haviam de durar
para sempre. Seis meses antes, pairara mesmo no globo o terror de uma guerra
nuclear com a crise dos mísseis em Cuba.
João XXIII não estava de acordo com os
que propalavam a impossibilidade da paz. Espírito clarividente, disse então ser
prioritário tratar com cuidado dos quatro "pilares da paz": a
verdade, a justiça, o amor e a liberdade. Mais: olhando os tempos que se
viviam, percebeu que havia neles dinamismos profundos já presentes na história,
a que chamou sinais dos tempos.
O fim do colonialismo, o nascimento de
novos países, a defesa mais eficaz dos trabalhadores, a presença incipiente das
mulheres na vida pública, a cada vez maior consciência de que "todos os
seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza", davam-lhe a
certeza de que tudo isso teria consequências profundas a nível político,
nacional e internacional.
A par disso, João XXIII aprofundaria o
conceito de "bem comum", já várias vezes referido no magistério,
papal. Vale a pena recordar:
"Todo o cidadão e todos os grupos
intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais
nada, que devem ajustar os interesses próprios às necessidades dos outros,
empregando bens e serviços na direcção indicada pelos governantes, dentro das
normas da justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isto dizer
que os respectivos actos da autoridade civil não só devem ser formalmente
perfeitos, mas também de conteúdo tal que de facto representem o bem comum ou a
ele possam encaminhar".
Estendeu mesmo o Papa à dimensão universal
este conceito de bem comum. Referiu-se por isso com grande esperança à ONU,
criada em 1945, no fim da guerra, dizendo-a "um passo importante no
caminho para a organização jurídico-política da comunidade internacional",
manifestando particular apreço pela sua Declaração Universal dos Direitos do
Homem, em que estavam fixados os fundamentos morais de um mundo caracterizado
pelo diálogo e não pela força, pela ordem e não pela desordem.
Apesar de todos os atropelos e
desastres de então para cá ocorridos, diga-se, em abono da verdade, que houve
um notável progresso na realização da paz que, hoje tem-se disso muito maior
consciência, não se pode separar da questão da dignidade e dos direitos do
homem. Não é este o tempo em que todos devem colaborar para a constituição de
uma nova organização de toda a família humana, a fim de garantir a paz e a
harmonia entre os povos e, simultaneamente, promover o seu progresso integral?
Contestando a perspectiva de quantos
consideravam a política como um campo desvinculado da moral, sujeita apenas ao
critério dos interesses, João XXIII apontou o caminho de um futuro melhor para
todos. Porque nenhuma actividade humana se situa fora dos valores éticos. Nem
sequer a política.
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz
de 2003 - que agora resumo brevemente - João Paulo II repete a confiança de que
João XXIII dava mostras há 40 anos, afirmando que é necessário "restaurar
as relações da convivência humana na base da verdade, da justiça, do amor e da
liberdade" (relações das pessoas entre si, das pessoas com as suas
respectivas comunidades políticas, das políticas comunidades entre si, bem como
as relações de pessoas, famílias, organismos intermédios e comunidades
políticas com a comunidade mundial).
Depois de
João XXIII
Estávamos entretanto em pleno Concílio,
sobre cujo início passaram no último 11 de Outubro 40 anos. O assunto do Vaticano II não era a DSI, antes a
própria Igreja que haveria de se auto-reflectir como Povo de Deus ao serviço
(porque ela é um sacramento ou instrumento) do Reino de Deus e do Mundo. E como
a Igreja tem tudo a ver com o Mundo, o Concílio acabaria por dedicar a esta
relação um documento - a Constituição pastoral "A Igreja no mundo
contemporâneo" - que toca claramente o nosso tema.
Arrancando dos grandes princípios da
antropologia cristã - a dignidade da pessoa humana e a actividade humana em
geral - redefiniria a missão da Igreja no mundo e reflectiria em particular
sobre alguns problemas já então preocupantes (a família, a cultura, a economia,
a comunidade política e a promoção da paz).
Residiria no entanto no modo como então
a Igreja olhava o mundo a grande novidade do documento. Digamos que, a partir
dele, tudo mudou. A Igreja não estaria mais contra o mundo, em luta com ele,
mas olhá-lo-ia com compreensão e respeito e numa atitude de diálogo, como
verdadeiro interlocutor com quem é preciso falar e ao lado do qual há que
colocar-se numa atitude de colaboração respeitadora da autonomia de cada uma
das partes.
Face ao Mundo, antes de o julgar
(segundo princípios teóricos) a Igreja tem que conhecê-lo.
"Antes de convertermos o mundo, e
precisamente para o convertermos, é necessário que nos acerquemos dele e lhe
falemos. […] Dele nos aproximaremos com toda a reverência, cuidado e amor, para
o compreendermos" - tinha escrito já Paulo VI depois do recomeço do
Concílio (em 1963), na encíclica Ecclesiam
Suam (1964).
O que não é de todo fácil: há os que
olham e não vêem (Mt 13,13), e há os que, tendo uma trave no olho (Lc 6,41),
também não conseguem ver. Eu próprio preciso de óculos. Só vendo a realidade, a
verdade da realidade, se pode entendê-la. Hoje como ontem, não se aplica ao
desempregado moderno a teoria do "vai trabalhar, malandro"! Isso é
julgar simplistamente segundo pré-juízos que estão ainda na cabeça de muitos.
Embora continue a haver malandros. E só depois de entender a realidade se pode
agir. É o já aqui referido método da revisão de vida, ou, dito duma maneira
mais complicada, do método indutivo (olhar a realidade baixo para cima e não de
cima para baixo, este o método dedutivo) que o Concílio adoptou. Se a
Renascença consagrou "o saber de experiência feito" (Camões), a
modernidade exaltaria a sacralidade da realidade que é o que é e nunca aquilo
que entendemos que ela é ou gostaríamos que fosse. O próprio marxismo e seus
métodos ensinaram muita coisa!
Só observando e respeitando a
realidade, o Concílio pôde afirmar que "as alegrias e esperanças,
tristezas e angústias dos homens de hoje são as alegrias e esperanças,
tristezas e angústias dos discípulos
de Cristo". Se é assim, porque não damos as mãos na resolução de problemas
e conflitos? Por isso - diria ainda a
Gaudium et Spes - a Igreja se interessa por tudo o que é verdadeiramente
humano, respeitando embora a justa autonomia das realidades terrestres, e
defendendo sempre a igualdade radical de todos os homens, a superação de uma
ética individualista e a prática da responsabilidade e da participação de todos
no que é de todos e a todos diz respeito.
Esta mudança de atitude da Igreja para
com o Mundo daria frutos já de seguida no tempo de Paulo VI e depois no de João
Paulo II.
A mudança de atitude da Igreja para com
o Mundo acontecida sobretudo no e com o Vaticano II daria de seguida frutos no
tempo de Paulo VI e no de João Paulo II. Chegávamos assim aos
nossos dias. Considera-se esta a última, até agora, fase da DSI, chamada a dar,
mais uma vez, respostas novas a problemas novos.
Agora, a DSI começou a ser considerada
como uma parte da teologia moral. Alguns a acusavam de ser apenas mais uma
ideologia. João Paulo II responderia:
"A doutrina social da Igreja não é
uma terceira via entre capitalismo e colectivismo marxista, nem sequer uma
possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas, mas
constitui por si mesma uma categoria. Não é tão pouco uma ideologia, mas a
formulação cuidada dos resultados da reflexão atenta sobre as complexas
realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à
luz da fé e da tradição eclesial. O seu objectivo principal é interpretar estas
realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do
ensino do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo
tempo transcendente para consequentemente orientar a conduta cristã. Pertence,
por conseguinte, não ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente
da teologia moral" (SRS, 1987).
Um ano depois de ser eleito, em 1964,
Paulo VI publicou a importantíssima encíclica Ecclesiam Suam ("Tendo Jesus fundado a sua Igreja"),
uma espécie de manifesto programático em que traçou orientações ao Concílio
(que foram aceites, diga-se), e onde tratou longamente a questão da necessidade
do diálogo a estabelecer entre a Igreja e o Mundo, documento que, só
indirectamente tem a ver com a nossa questão.
Na Populorum
Progressio, porém, de 1967, abordaria directamente o Progresso
(desenvolvimento) dos povos. A questão social deixara de ser um problema
interno a cada nação para se tornar num problema universal. Por isso, o Papa
fez um veemente apelo a uma acção urgente e inadiável: reafirmando o destino
universal dos bens e partindo da prioridade da Pessoa humana e do Ser sobre o
Ter, pedia ao Terceiro Mundo uma transformação radical das suas economias como
única forma de evitar a injustiça e a violência, aos países industrializados
suplicava ajudassem os países pobres saídos ou a sair da exploração
colonialista, e a todos um grande esforço na construção de uma nova ordem
internacional, porque "o desenvolvimento é o novo nome da paz".
Quatro anos depois, aos passarem 80
sobre a Rerum Novarum de Leão XIII, o
mesmo Paulo VI endereçaria uma carta à Comissão Justiça e Paz, conhecida como a
Octogesima Adveniens, sobre o
compromisso político e social dos cristãos, uma espécie de carta da maioria dos
leigos e das comunidades. É a estes - aos leigos e às comunidades - que compete
tomar opções e dar as mãos aos diferentes movimentos históricos (decorrentes
das diferentes ideologias, a liberal e a marxista), sob pena de deixarem de
participar na vida da sociedade
"Pertence aos leigos, pelas suas
livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e directrizes, imbuir de
espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da sua
comunidade de vida. […] Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções,
fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas […] Cada um
deve individuar a sua própria responsabilidade e discernir em consciência as
acções nas quais está chamado a participar" (nº 47).
Mas "é às comunidades cristãs que
cabe analisar, com objectividade, a situação própria do seu país procurando
iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho…, [que] incumbe
discernir, com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos
responsáveis e em diálogo com os outros cristãos e com todos os homens de boa
vontade, as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as transformações
sociais, políticas e económicas que se apresentam como necessárias e com
urgência em não poucos casos" (nº 4).
Pelo documento passam ainda "as
mutações actuais", isto é, "as realidade novas" de novos tempos:
a urbanização, os cristãos urbanos, os jovens, a mulher, as novas questões do
mundo do trabalho, os novos pobres, a discriminação racial, os emigrantes, a
nova comunicação social, o meio ambiente, a evolução histórica do marxismo, o
renascer das utopias, as novas ciências humanas, a ambiguidade do progresso.
"Diante de tantas questões novas,
a Igreja procura fazer um esforço de reflexão para poder dar uma resposta, no
seu campo próprio, à expectativa dos homens. Se os problemas se apresentam
hoje, por um lado, como originais, dada a sua amplitude e a sua urgência, será
que, por outro, o homem não tem capacidade para os resolver? A doutrina social
da Igreja acompanha os homens nesta busca diligente. […] Ela é algo que se
desenvolve por meio de uma reflexão que é feita em permanente contacto com as
situações deste mundo, susceptíveis de mudança, sob o impulso do Evangelho,
qual fonte de renovação enquanto que a sua mensagem é aceite na sua totalidade
e nas suas exigências" (nº 41). De resto, "No campo social, a Igreja
sempre teve a preocupação de assumir um duplo papel: o de iluminar os espíritos
para os ajudar a descobrir a verdade e a discernir o caminho a seguir no meio
das diversas doutrinas que os solicitam; e o de entrar na acção e difundir, com
uma real solicitude de serviço e de eficácia, as energias do Evangelho"
(nº 47).
João Paulo II, eleito entretanto em
1978, é o último desta cadeia de papas que intervieram marcadamente na reflexão
da Questão Social.
No fim da década de 70, estava o mundo
a braços com a grande recessão económica que se faria sentir sobretudo nos anos
80: a crise do petróleo tinha começado em 1973, e estava já em curso a grande
revolução tecnológica que a maior parte de nós viveu, do computador ao
telemóvel de 3ª geração. João Paulo vinha do Leste, da catoliquíssima Polónia,
já com o Solidariedade à perna, a deixar adivinhar transformações de fundo como
viria a ser, por exemplo, a queda do muro de Berlim.
Eram, no entanto, diferentes os
problemas nos diversos continentes. A África afundava-se no marxismo, na fome,
na corrupção e nas lutas tribais; na Ásia surgiam os "tigres" do
Oriente; na América Latina, a teologia da libertação começava a ser farol e
guia na busca da liberdade secularmente oprimida; no Primeiro Mundo, o
"economicismo" (assim lhe chamaria o papa) justificava tudo; as
contas, e contas positivas e expansivas eram o único valor e cuidado, tudo o
mais, fosse o que fosse, até a dignidade das pessoas, não contava, não era
cuidado, era coisa sem interesse.
Claro que João Paulo II vinha do Leste,
de um contexto político e económico diferente. Mas era claro também que, num
lado e no outro, os problemas batiam no mesmo: o que era o mais importante, as
pessoas, cada pessoa, ou outros valores quaisquer, fossem eles as empresas, a
economia, o estado, a ideologia, o meu interesse particular, sei lá que mais?
Nuns lados o mais importante era o
Estado e sua ideologia. Noutros era a economia, a economia crescente,
expansionista, o dinheirinho a aumentar na carteira e no banco. E em quase
todos o interesse particular de alguns era mais importante que a fome, a
necessidade ou a dignidade da maior parte, multiplicando vezes sem conta a
parábola do homem rico e do pobre Lázaro. Na maior parte dos países, importante
era a macro-economia: desde que esta estivesse bem, morressem todos à fome ou
coisa parecida. Todos nos lembramos ainda dos nossos anos 80. E quanto mais se
cuidava a economia, mais crescia a instabilidade social, a violência urbana e o
flagelo da droga, a greve, a reivindicação, a baixa do nível de vida, etc, todos
conhecemos este rol.
Foi tudo isto, dito assim desta maneira
tão simples, que levou João Paulo II a perceber - a perceber não que isso já
ele o sabia!, mas a consagrar no seu ensinamento - duas coisas.
Primeiro. Hoje os problemas não são
mais nem regionais nem nacionais, não são sectoriais, são universais. Mais
daqui menos dali, estes problemas são de todos os povos, de todos os países, de
todos os continentes, embora tenham concretizações diferentes em África ou no
Primeiro Mundo. Vivemos hoje numa aldeia global. Para os europeus vivermos como
vivemos, os africanos passam fome. Para que na América…, no Chile tem de ser
como os americanos querem, nem que seja preciso derrubar o Presidente. E o
mesmo e diga do petróleo do Médio Oriente.
Não há portanto, valor que se salve,
se, é a segunda questão, no meio desta barafunda não se admitir que o valor
principal é a Pessoa, cada pessoa humana, cada humano, homem ou mulher. E tudo
o mais são tretas.
Por isso, João Paulo II pôde escrever:
"Um desenvolvimento que não é só
económico mede-se e orienta-se segundo a realidade e a vocação do homem visto
na sua globalidade: ou seja, segundo um parâmetro interior que lhe é próprio
[…], parâmetro que está na natureza específica do homem, criado por Deus à sua
imagem e semelhança, natureza corporal e espiritual, simbolizada - no segundo
relato da criação - pelos dois elementos, a terra com que Deus plasma o corpo
do homem, e o sopro de vida, insuflado nas suas narinas. […] Com base nesta
doutrina, cê-se que o desenvolvimento não pode consistir somente no uso, no
domínio e na posse indiscriminada das coisas criadas e dos produtos da
indústria humana; mas sobretudo em subordinar a posse, o domínio e o uso à
semelhança divina do homem e à sua vocação para a imortalidade. É esta a
realidade transcendente do ser humano, a qual é participada igualmente desde a
origem pelo homem e pela mulher, e que, portanto, é fundamento social"
(SRS 29).
Mas então, e o deficit? Não é
importante baixar o deficit? "É precisamente a consideração dos direitos
objectivos do homem do trabalho - de todo o tipo de trabalhador, braçal,
intelectual, industrial, agrícola, etc - que deve constituir o critério
fundamental para a formação de toda a economia" (LB 17). E exactamente
porque - dizia já Santo Ireneu de Lyon, sec. II - "Gloria Dei Homo
vivens" (a maior glória de Deus é o Homem vivo).
Claro que isto é muito difícil,
sobretudo num mundo que é hoje, todo ele, economicista e egoísta, mundo em que
cada um (indivíduo ou nação) pensa em si, apenas em si, perdidas a
solidariedade e o próprio sentido da humanidade.
II.
Enquadramento teológico da DSI
Como é que o aparecimento de uma
renovada auto-consciência da Igreja (eclesiologia) acontecida a partir dos
inícios do séc. XIX, primeiro muito tímida, acabou por influir profundamente na
Questão Social?
Quando, em qualquer sector da vida, um
esquema se esgota, muda-se de esquema. É assim quando, por exemplo, a gente se
cansa do interior da casa: porque não pode comprar móveis novos muda a
disposição dos antigos. É assim na sociedade, nos grupos, em toda a vida. Dum
modo mais ou menos reformista ou revolucionário, muda-se.
Nos inícios do séc. XIX o esquema
eclesiológico vigente estava esgotado. Concebida à maneira imperial -
constantiniana - ou/e de um modo claramente piramidal e jurídico (todo o poder
vem de Deus e sempre de cima para baixo), a Igreja era uma hierarcologia
(Congar) de desiguais. Com a mentalidade romântica (vinda da Alemanha:
Schiller, Goethe, Wagner…), entretanto, libertara-se já a noção de Povo
entendido como "organismo vivo" capaz de gerar cultura…
E foi exactamente na Alemanha que um
teólogo verdadeiramente novo, no sentido de inovador, propôs uma chave nova
para entender a Igreja. Chamava-se ele Möhler (1796-1838) - como todos os
filhos dos deuses morreu jovem! - e o seu raciocínio ou ponto de partida foi
muito simples: Jesus, que era de condição divina, não reivindicou essa sua
condição, pelo contrário, tomou a condição de servo, em tudo semelhante aos
homens, identificando-se com eles, e rebaixando-se a si mesmo até à morte de
cruz; por isso é que Deus o exaltou acima de tudo e de todos (cf Filp 2,6-8 e
Ef 1,20-23).
(Faço aqui um breve parêntesis para
lembrar que os artistas, os poetas, percebem e sabem dizer estas coisas muito
antes e muito melhor que os intelectuais. Convido-vos a escutardes em casa, se
tendes o disco, o "Incarnatus … et sepultus est" da Missa em si menor
de Bach, "a catedral da música", onde esta descida está sonoramente desenhada de uma maneira única, seguida
imediatamente da subida expressa pelo
"Et ressurrexit". Mas o que Bach tinha dito já em 1738, a teologia só o exprimiu 100 anos depois, números
redondos).
Se Jesus fez isto, à Igreja - a quem
ele entregou a continuação da sua obra ou missão ou tarefa - não resta outra
hipótese. Tem de o fazer também, deixar-se de teorias de poder e quejandos, e
baixar à condição dos homens, não reivindicando direitos ou regalias, mas
servindo. Möhler formulou assim: a Igreja é um Natal continuado.
Mas não termina aqui o seu raciocínio.
É que Jesus não baixou por baixar. Baixou para subir. Por isso é que em todo o
Novo Testamento (e já no Antigo) este jogo das palavras baixar e subir aplicado a
Jesus é frequentíssimo: ele desceu dos céus… para subir aos céus. O Símbolo dos
Apóstolos: "nasceu da Virgem Maria (e depois disso continuou a descer:
padeceu…, foi crucificado, morto e sepultado; desceu mesmo à mansão dos
mortos)" e depois "subiu aos céus". O Símbolo de
Niceia-Constatinopla: "desceu do céu e incarnou … e subiu aos céus onde
está sentado à direita do Pai". Bem mais próximo de nós, no fim dos anos
40 do século passado, um justamente célebre arcebispo de Paris - Suhard -
explicava assim: "Quando o Verbo se fez carne, fez-se plenamente como nós,
[mas] não se limitou a um movimento descendente. Tomou a nossa natureza e
assumiu-a… Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus. A incarnação do
cristão deve seguir o seu modelo".
Volto a Möhler. O teólogo - que,
curiosamente, começou por ser professor de Direito Canónico na Universidade de
Tubinga e só depois se dedicaria à eclesiologia - tinha encontrado um
verdadeiro ovo de Colombo. A Igreja, continuava ele, só se entende neste jogo
dinâmico de descer e subir, de descer para subir, de descer ela para ajudar
outros a subir, ao jeito da Incarnação do Filho de Deus, deixando ou pondo de
lado categorias ou privilégios, direitos mesmo, cangada de que se não pode
carregar pois lhe impede quer a subida quer a descida.
Este raciocínio fundamental, preliminar
e originante (de uma nova eclesiologia), estamos mesmo a ver no que deu:
ninguém lhe ligou. Muito menos se tiraram dele quaisquer consequências. A coisa
caiu no esquecimento. Ninguém mais falou do assunto (não foi bem assim mas
deixem-me utilizar a expressão), entretanto Pio IX sair-se-ia com o celebre Syllabus (1864), a condenar mundo e
modernidade, haveria mesmo o Concílio Vaticano I (1869-1870), o da
"papolatria", a passar ao lado desta reflexão como se ela não tivesse
sido formulada, mas…
O Espírito Santo não estava a dormir.
Em 1870, com a ocupação de Roma, o
Concílio Vaticano I seria apressadamente suspenso e, em 1879, subiria à cadeira
de Pedro o nosso já conhecido Leão XIII, o "papa dos trabalhadores"
que, depois de publicar a Rerum Novarum
(1891), retomaria os princípios de Möhler e logo em duas encíclicas (Satis cognitum de 1896, e Divinum illud do ano seguinte), que são
os documentos mais solenes do magistério papal. Quem diria! Leão XIII é mesmo
hoje muito conhecido pela Rerum Novarum
mas praticamente desconhecido nesta sua vertente de eclesiólogo, ele que não
deixou cair no esquecimento a reflexão do teólogo de Tubinga. A Igreja tem de
baixar de tronos, regalias e privilégios, e descer (esta reflexão de Möhler
teria outras consequências - diga-se - mas que não têm propriamente a ver com a
nossa questão e, por isso, passo à frente).
A quem, antes de mais ninguém, tinha a
Igreja de descer no séc. XIX, repetindo o ciclo da Incarnação, em plena
Revolução Industrial?
A
analogia da Incarnação
Cansado do esgotado neoclassicismo do
séc. XVIII, bem como dos temas e soluções do período clássico (grego e latino)
da Antiguidade europeia, o século XIX voltou-se para o Povo e sua cultura,
tomando consciência de que cada povo ou nação, mais do que qualquer indivíduo,
tinha capacidade de criar e desenvolver formas de expressão (cultura)
colectivas. Mais ainda: cansado do frio e seco racionalismo (confiança absoluta
na Razão humana e suas luzes), o séc. XIX entregou-se aos prazeres da
imaginação, da emoção e do sonho, mais próprios do povo que do homem culto. Era
o romantismo.
Enquanto isto e também por isto, na
teologia, Möhler propunha uma chave nova para entender a Igreja: entre esta e o
mistério da Incarnação do Verbo havia uma analogia. Ou seja: assim como o Verbo
de Deus tinha descido à carne humana para ajudar o homem a subir para Deus,
assim a Igreja - que continua a sua Obra no tempo - havia de fazer, deixar
tronos e potestades, descendo aos mais pobres do povo, para os ajudar a subir:
"Se o Verbo de Deus houvesse
entrado no coração dos homens sem ter tomado a forma de servo e,
consequentemente, sem ter aparecido em forma corporal, teria apenas fundado uma
Igreja invisível, puramente interna. Mas como o Verbo se fez carne,
exprimindo-se assim de forma externamente perceptível e humana, falou como
homem aos homens e obrou e sofreu à maneira humana, a fim de ganhar de novo os
homens para o Reino de Deus. Assim, o meio escolhido para a consecução desse
fim correspondeu completamente ao método de instrução e educação pedido pela
natureza e necessidades do homem. […] A Igreja visível é hoje o próprio
Filho de Deus que continua a aparecer entre os homens em forma humana,
renovando-se continuamente e eternamente se rejuvenescendo: ela é a incarnação
permanente do Filho de Deus" (Möhler).
Esta é a teoria de um teólogo: Deus
fez-se pobre para ajudar o pobre a ser rico, retomando assim a expressão de
Paulo: "Nosso Senhor Jesus Cristo, que era rico, fez-se pobre para nos
enriquecer com a sua pobreza" (Cor, 8.9).
Esta era a teoria, repito. Já atrás se
disse como esta teoria só foi avalizada no fim do séc. XIX por Leão XIII.
Antes disso, porém, estávamos em plena
Revolução Industrial, rodeados dos novos pobres do século do pauperismo que foi
o XIX, os do povo proletário, muitas coisas aconteciam.
Conto só uma história.
Estávamos no Natal de 1856. O Pe
António Chévrier (1826-1879) era coadjutor em Guillotière, um subúrbio
industrializado de Lyon, no eixo que esta cidade definia com Saint Étienne, a
primeira região industrial francesa. A paróquia teria, já nessa altura, cerca
de 80.000 habitantes, tudo praticamente operários. Chévrier vivia profundamente
angustiado pela miséria material e religiosa daquele proletariado: "Nas
oficinas, o trabalho absorve de tal modo os operários que eles deixaram de frequentar
a Igreja, quase esqueceram a doutrina religiosa, visto que a fábrica, a oficina
e a mecânica, os obrigam a um trabalho de todos os dias e de todas as horas,
sob pena de lhes faltar o pão". Mas Chévrier não é homem para se contentar
com análises. Rapidamente vai passar à acção. É ele próprio que conta a sua conversão: na noite de Natal de 1856,
"ao meditar sobre a Incarnação diante do presépio do Menino Jesus … o
Filho de Deus veio à terra para salvar os homens… Compreendi que não basta ter
compaixão dos pobres e procurar aliviar a sua miséria. Se os queremos
evangelizar temos de fazer aquilo que Jesus fez: partilhar a sua vida e
tornar-nos pobres como eles".
Esta atitude, que não é a única que a
História da Igreja regista neste século e nestes meios operários, libertará a
palavra Incarnação: assim como Jesus incarnou tomando em sua vida a mesma vida
dos homens, assim a Igreja, que continua a sua obra, tem de incarnar.
Nada de novo debaixo do sol, é verdade.
Já Paulo tinha escrito assim aos Coríntios:
"Livre em relação a todos, fiz-me
servo de todos para ganhar o maior número. Fiz-me judeu com os judeus, para
ganhar os judeus. Com os que estão sujeitos à Lei comportei-me como se a ela
estivesse também amarrado, para ganhar os que a ela se submetem. Com os que
vivem sem Lei, embora eu não viva sem ela porque tenho a Lei de Cristo, fiz-me
um sem Lei para ganhar os que vivem sem ela. Fiz-me fraco com os fracos, para
ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer
custo" (1ª Cor 9, 19-22).
Nada de novo debaixo do sol, dizia. O
certo é que a Igreja do séc. XIX começou a sentir, pouco a pouco, a necessidade
de incarnar, de comungar da vida daqueles a quem queria anunciar o Evangelho.
A palavra incarnação faria fortuna na
Igreja do séc. XIX e do séc. XX. Incarnar quer/quis dizer "tomar a
carne", isto é, a condição dos homens, baixar de cadeirais e lugares altos
para os lugares da humanidade, sejam quais forem, os da pobreza material claro,
mas hoje como sabemos o conceito de pobreza não tem mais os limites do passado.
Posso relembrar um texto do Pe Gaspar
(1946-1995)?
É preciso "Tentar perceber a
dinâmica da Salvação trazida por Jesus, aceitando arriscar a infinitude do
Reino de Deus numa experiência concreta, reduzida no espaço e no tempo e,
sobretudo, escolhendo (porque certamente não foi por acaso) incarnar numa
família pobre, numa terra pobre, num povo pobre, levou-me a compreender a
pobreza não somente como ausência de bens, mas sobretudo como solidariedade de
destino com os que não são privilegiados da vida, com os que estão na mó de
baixo nos mecanismos de produção de bens deste mundo". Mas "A nossa
grande dificuldade está sempre ligada com o Mistério da Incarnação. Não
conseguimos aquilo que Deus já fez: ligar o Céu e a Terra, Deus e o Homem, unir
os interesses dos homens e os de Deus, fazendo-se ele próprio um homem,
assumindo toda a sua vida, dinâmica, limitações, pecados, grandezas e
possibilidades. (…) Jesus Cristo não receou arriscar na incarnação. Sendo Deus
aceitou limitar-se a um homem. Sendo eterno, aceitou limitar-se num tempo da
História. Estando presente em toda a parte, como diz a doutrina, aceitou viver
confinado num lugar. Sendo omnipotente, aceitou o desafio da fraqueza e da
pobreza, aceitou pertencer ao povo dos pobres e dos fracos, dos não detentores
do poder e da riqueza; e aceitou tomar riscos concretos que lhe valeram as
inimizades mortais".
Começamos assim a perceber porque é que
a pobreza dos pobres exigiu da Igreja uma nova postura perante os pobres.
Começava a nascer o caldo de cultura da Doutrina Social da Igreja.
Sendo embora Deus, Jesus desceu
"propter nos homines et propter nostram salutem" (por causa de nós,
homens, e para nossa salvação). O porquê desta descida de Jesus intrigou
profundamente os nossos maiores e, desde logo, Santo Anselmo, bispo de
Cantuária, do séc. XI, que formulou a célebre pergunta "Cur Deus
Homo?" (Deus fez-se homem porquê?), para a qual encontrou esta resposta: o
pecado do homem, que havia ofendido a dignidade de Deus, não podia ser perdoado
sem que, antes, o ofendido Deus fosse desagravado pelo homem-autor-da-ofensa.
Segundo esta teologia, profundamente
marcada pela mentalidade ético-jurídica romana, todo o mistério de Jesus é
visto em função da reparação que era devida a Deus (o direito era tão
importante para os romanos como hoje o lucro para os economistas) a ofensa
feita a Deus pelo pecado do homem tinha de ser reparada; ainda há praí muitas
traduções litúrgicas que dizem que Jesus é «preço da nossa redenção». A boca
sempre a falar da abundância do coração! E já que o homem não podia oferecer a
Deus nada de jeito, Jesus, que não precisava para nada do seu mérito,
transferiu-o para os homens. E deste modo conseguiu que o Pai perdoasse à
humanidade. Daí aquelas frases piedosas: que Jesus morreu pelos nossos pecados,
que os nossos pecados o mataram…, etc. Esta explicação aparece-nos hoje, no
mínimo, abstrusa.
A verdade é bem outra: nós homens
estávamos cheios de problemas; a doença, a pobreza, o pecado e a morte. Por
isso mesmo, Jesus veio até nós "propter nos" (por nossa causa",
e com uma Boa Notícia que é o que quer dizer a palavra "evangelho"):
ele veio combater as causas dos nossos males.
Um dia, depois de um longo ensinamento
feito aos Doze, chegaram os discípulos de João Baptista e dispararam: "És
tu aquele quer há-de vir ou devemos esperar outro?" (Mt 11,3). E Jesus
respondeu assim: os cegos, os coxos, os leprosos e os surdos são curados da doença, aos pobres é anunciada uma Boa Notícia, os mortos ressuscitam (até
aqui Mt 11,5) e os pecados
são perdoados (Luc 7,49). Jesus não vem olhar pelos interesses de Deus
(vingar a sua honra, reparar a ofensa que lhe foi feita, exigir compensação,
tão pouco castigar em seu nome). Jesus vem "para que tenhais a vida e a
tenhais em abundância" (Jo 10,10), pois no ressuscitado todos voltarão a
receber a vida (1 Cor 15,22). Por isso é que os sãos não precisam de médico (Mt
9,12), e as 99 ovelhas que esperem enquanto o pastor vai à procura da única que
se perdeu (Lc 15,4-7). Numa palavra, Jesus veio à causa do sofrimento do homem:
a doença, a pobreza, a morte e o pecado.
Como ele e à luz dele, a Igreja tem de
proceder e comportar-se assim. Foi exactamente o que a Igreja descobriu no
tempo do romantismo, preocupada com o homem concreto, com o homem pobre e
sofredor do seu tempo.
Ir às
causas da pobreza
É verdade que a Igreja sempre cuidara
dos doentes e dos pobres, dos pecadores e dos mortos. Mas nunca tinha sido
capaz de ir às causas destes males. Quanto mais tratava dos doentes, mais eles
morriam: quem se não lembra da peste negra do séc. XIV? Quanto mais pão
distribuía mais fome havia: não era assim Pe Américo? Não é verdade que ainda
no tempo dos nossos pais a morte matava muitos mais que o que devia? E o pecado
não amarrava muito mais o pecador à Lei? ("O pecado aproveitou-se da
oportunidade que lhe deu a Lei e provocou em mim toda a espécie de cobiça"
- Rom 7, 8).
A Igreja nunca tinha sido capaz de ir
às causas. E esta foi a nova atitude da DSI. Olhando pela primeira vez a
"miséria imerecida … dos homens das classes inferiores, atendendo a que
eles estavam na sua maior parte em situação de infortúnio" e a viver
"um jugo quase servil", "é preciso, com medidas prontas e
eficazes, vir em seu auxílio" (RN 1), "descobrir as causas da
miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la resolutamente" (PP
72). Não já tratamentos de paliativo, com analgésicos, mas um tratamento que
vença as causas da infecção e do cancro, miséria imerecida, de modo que não
haja mais miseráveis, que vença as causas do jugo quase servil de modo que haja
apenas homens livres a quem se garantam condições de vida digna.
Este ir às causas da pobreza tem de ser
empenhado e eficaz: "Há um paradoxo que atravessa a relação da Igreja
portuguesa com a pobreza: é inegável que a Igreja se preocupa com os pobres e
está na primeira linha da ajuda directa aos pobres. Mas enquanto faz isso, tem
um défice manifesto em tudo o que se refere à denúncia dos processos de
empobrecimento, das situações de injustiça na génese da pobreza, e na formação
da consciência dos cristãos acerca dos mecanismos da desigualdade e da
exclusão" (Manuela Silva), crítica que parece estender-se por exemplo ao
documento sobre o trabalho recentemente publicado, no mínimo "brando em
demasia", diz alguém que agora não cito.
Este ir às causas da pobreza, exige se
conheçam até as novas formas de pobreza que não cessam de aparecer:
"Torna-se necessário um
discernimento cada vez mais apurado para captar, na sua origem, situações
nascentes de injustiça e instaurar progressivamente uma justiça menos
imperfeita. No mundo industrial em constante mutação, que exige uma adaptação
rápida e permanente, aqueles que possam vir a ser lesados serão cada vez mais
numerosos e mais sujeitos a não conseguirem fazer ouvir a sua voz. A atenção da
Igreja deve portanto voltar-se para os novos pobres - impedidos por toda a
espécie de dificuldades, inadaptados, velhos e marginais de origem diversa -
para os aceitar, para os ajudar e para defender o seu lugar e a sua dignidade
numa sociedade endurecida pela competição e pelo fascínio do êxito "(OA
15).
A DSI despoletaria de imediato uma
tríplice atitude: 1º a denúncia da raiz dos problemas, 2º a erradicação dessas
causas, mas 3º sem esquecer que no meio disto tudo "quem se lixa é o
mexilhão", isto é, os mais pobres. Não se trata, portanto e só, de uma
teoria ou ideologia, de meia dúzia de princípios teóricos que depois na prática
logo se vê. Não se trata apenas de uma boa vontade piedosa; pelo contrário,
exige uma análise rigorosa, mesmo científica, da realidade em questão, do mundo
do trabalho, do mundo económico-financeiro, da dignidade da Pessoa humana e
demais valores em jogo, das relações sociais e internacionais, etc. E
finalmente exige se não esqueça que, a jusante das causas, há vítimas que não perdem
nem a sua dignidade humana nem os seus direitos. Quem vela por elas se já nem o
próprio Estado cuida dos seus pobres?
Diziam assim os Bispos reunidos no
Sínodo de 1971 sobre "A Justiça no Mundo": "A nossa acção deve
ter como objectivo em primeiro lugar aqueles homens e nações que, devido a
formas diversas de opressão e por força da índole própria da sociedade actual,
são vítimas silenciosas da injustiça e, mais ainda, vítimas da injustiça sem
direito a voz".
E as
comunidades?
Com a DSI, a Igreja aprendeu a ir às
causas dos problemas, a contribuir para a sua erradicação. Deixou por isso de
se preocupar apenas com as manifestações dos problemas, como fizera ao longo de
toda a sua história.
De facto, uma coisa são as causas dos
problemas: a falta de trabalho é causa de fome; outra a manifestação da causa:
como o Zé não tem que comer, aqui mesmo à minha porta, deixo-o morrer à fome?
Nem o Estado, nem a Igreja, nem eu
próprio, podemos abandonar o que morre de fome à minha porta, embora ajudando-o
eu não resolva o problema global da fome no mundo: "dada a dimensão
mundial que a questão social assumiu, o amor preferencial pelos pobres, com as
decisões que nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de
famintos, de mendigos, sem-tecto, sem assistência médica e, sobretudo, sem
esperança de um futuro melhor; não se pode deixar de ter em conta a existência
destas realidades. Ignorá-las significaria tornarmo-nos como o rico que fingia
não conhecer o pobre Lázaro, que jazia ao seu portão" (SRS 42).
É este o Quarto Mundo, como hoje se
diz. Depois do Primeiro (a Europa) e do Segundo (América do Norte), mundos
ricos e desenvolvidos, o Terceiro (hemisfério sul) e o Quarto Mundos, este ao
pé da porta, fazendo mesmo parte do Primeiro.
Por tudo isto, eu penso que as
comunidades têm de/devem ter um Serviço de Partilha Fraterna, cuja
missão não é ir às causas, mas às consequências, às reparações imediatas
exigidas por uma fraternidade que de outro modo é negada, e um Serviço
Justiça e Paz, que ajude, esse sim, a chegar às causas, a compreender os
seus mecanismos e a possibilidade da sua remoção. Repito Paulo VI, atrás
citado:
«É às comunidades cristãs que cabe
analisar, com objectividade, a situação própria do seu país procurando
iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre
haurir princípios de reflexão, normas para julgar e directrizes para a acção …
as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as
transformações sociais, políticas e económicas que se apresentam como
necessárias e com urgência em não poucos casos … [para o que] os cristãos
deverão, antes de mais nada, renovar a sua confiança na força e na
originalidade das exigências evangélicas" (OA 4).
Esta é uma atitude muito cristã e uma
cultura teológica que irritou muito a geração dos nossos pais que logo acusavam
estarem (os presbíteros e as comunidades) a tratar de política mal se tentava
chegar às causas, mal se falava em causas, coutada privada da política. Por
causa disso é que o Vaticano II exortaria expressamente os cristãos a cumprirem
fielmente os seus deveres terrenos, acrescentando:
"Afastam-se da verdade os que,
sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, pensam que podem por
isso descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a própria fé os
obriga ainda mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um. Mas não
menos erram os que, pelo contrário, opinam poder entregar-se às ocupações
terrenas, como se estas fossem inteiramente alheias à vida religiosa, a qual
pensam consistir apenas no cumprimento dos actos de culto e de certos deveres
morais. Este divórcio entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de
muitos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo" (GS
43).
A não ser assim, não é verdade que os
cristãos se "refugiavam nos altares, entregando o mundo ao diabo",
como escreveu o poeta e eu cito mais uma vez?
As comunidades cristãs, portanto, têm
de viver sempre entre os termos desta dicotomia: por um lado, "analisar,
com objectividade, a situação própria do seu país … à luz das palavras
inalteráveis do Evangelho … [em ordem a] as opções e os compromissos que convém
tomar, para se operarem as transformações sociais, políticas e
económicas"; por outro, atender os pobres Lázaros, que jazem ao meu
portão.
É por isso que a teologia das
comunidades tem um toque diferente da teologia dos teólogos. É assim desde
Antioquia e Alexandria do Egipto. E é por isso ainda que os melhores teólogos
não se afastam das comunidades.
A isto se chama "incarnar", palavra
que, como expliquei, e à luz da analogia entre o mistério da Igreja e o de
Cristo, fez fortuna na teologia, a partir do séc. XIX. Foi a necessidade de
incarnar, sentida por muitos na Igreja do séc. XIX e XX, que deu origem, por
exemplo, aos padres operários. Incarnando, isto é, aterrando no mundo da
injustiça e da pobreza, perceberam por dentro o mundo dos pobres, tornados
pobres com os pobres, trabalhando como os pobres e nos lugares dos pobres,
explorados como os pobres, esgotados como os pobres, estupidificados como os
pobres. Escreveu por isso o Pe. Gaspar:
"O grande presente não são os
pastores que o dão ao Menino. É Deus que dá o seu Filho aos homens; não para
que ele venha ver, ofereça algo e regresse, mas para que ele venha e viva a
mesma vida daqueles que quer ajudar, participe da vida dos desfavorecidos… essa
é a verdadeira solidariedade".
De Chévrier ao Gaspar, o presépio é um
grande mistério!
III.
Algumas questões particulares
1. A
universalidade da Questão Social e a ONU
O menino nascido na insignificante
cidade de Belém e que foi depois para Nazaré, terra de onde não pode vir coisa
boa (Jo 1,4), é apenas o sacramento
da presença discreta de Deus no coração da história. Tanto que muitos dos seus
não o receberam (Jo 1,11).
Deus continuou assim tão retirado do
mundo como até aí, sendo embora a sua presença tão profunda que os que se
perdiam nas aparências - a maior parte? - não foram capazes de o reconhecer. No
entanto e paradoxalmente, como ele próprio reconheceu, já adulto, nenhum dos que
se perguntam pelo sentido da dignidade humana está longe do Reino que ele
anunciava (Mc 12,34). Ele próprio, nesta luta, foi o maior. Com o seu
nascimento começou a extraordinária história de um homem sem qualidades
sobre-humanas, ele que não era nem um super-homem nem marioneta da divindade,
mas sim um homem "em tudo igual a nós excepto no pecado" (Heb 4,15),
um homem em quem a humanidade tomou forma humana em toda a sua beleza e
tragédia. Jesus é o rosto da história da bondade sem limites mas também da crueldade
do mundo. No entanto, mesmo depois dele e apesar dele, a aventura humana
continuou em dores de parto, entre a agonia e a esperança, numa história feita
de pequenos passos que, um por um, configuram uma nova humanidade carregada
embora de ambiguidades e desastres.
Esta é a nossa fé … que nos gloriamos
de professar em Jesus Cristo, nosso Senhor!
Às voltas com a DSI, ouvimos falar de
paz e ouvimos falar de guerra, assistindo aos seus preparativos.
Já percebemos que esta DSI começou a
debruçar-se sobre a vida no interior das fábricas, sobre os seus trabalhadores
mais pobres, a afirmar os seus direitos (hoje já só se fala da sua defesa),
pequenos problemas perdidos num grande mundo. Daqui se passou rapidamente às
causas da "miséria imerecida". E, nomeadamente com João XXIII e Paulo
VI, mas já com Pio XI e Pio XII, se alargara às dimensões do mundo, muitas
décadas antes que soubéssemos dizer a palavra globalização.
Os problemas do homem, de todo o homem,
são desta "aldeia global" que é o mundo, de todo o mundo e do mundo
todo. Rapidamente a DSI se estendeu aos problemas universais. De "Pacem in
Terris" falava João XXIII.
Nós, os cristãos, e todos os mais
afinal, sabemos que um Homem de coração desarmado e uma Terra de justiça são
conceitos escatológicos - "as nações caminharão à tua luz e os reis ao
esplendor da tua aurora … todos vêm ao teu encontro … a ti afluirão os
tesouros e a riqueza das nações" (Isaías) - que nunca alcançaremos
plenamente neste mundo, embora devamos todos aproximar-nos deles e lutar por
eles o mais possível.
Por isso, desde que se conseguiu falar
de paz a nível mundial, e isso foi após a 2ª Guerra assim dita, essa sim
verdadeiramente mundial, se começou também a falar numa autoridade supra
estatal (que detivesse mesmo o monopólio da violência legítima). Se, no fim da
1ª guerra (1914-1917), pôde organizar-se uma Sociedade das Nações, no fim da 2ª
nasceria a ONU.
O Vaticano II deixaria escrito:
"Devemos com todas as nossas forças preparar uma época em que, por acordo
das nações, possa ser absolutamente proibida qualquer guerra. Isto requer o
estabelecimento de uma autoridade pública universal reconhecida por todos, com
poder eficaz para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito
pelos direitos" (GS 82). Para tal havia sido criada exactamente a ONU. O
preâmbulo da sua Carta refere expressamente que é seu fim "preservar as
gerações futuras da praga da guerra que, por duas vezes no espaço de uma
geração, infligiu à humanidade indizíveis sofrimentos". Todos conhecemos,
porém, a história da difícil vida desta instituição mundial.
A sua importância é mais fácil de
perceber se tivermos presente quanto custou o estabelecimento de um poder único
e central dentro da cada país. Quando é que isso aconteceu em Portugal? Com D.
Afonso Henriques, com D. Dinis, com D. João I, com o II, com o III ou só com o
IV? Com D. Pedro V, com Sidónio Pais ou só com Salazar? E, mesmo assim, com que
custos de terror, de injustiça e de arbitrariedade? Em 1938, La Brière
comparava a sociedade internacional a "um vasto país que não possuía nem
polícia, nem tribunais, nem sistema algum de repressão penal", de modo que
os particulares, privados "de instituições que tutelem o direito de cada
um", não têm outro recurso senão organizar-se eles e armar-se "para se
defenderem dos delinquentes e dos agressores injustos".
Antes dele, Kant (séc. XVIII) tinha
falado da necessidade de "fugir do estado sem lei dos selvagens e de
entrar numa união de nações, na qual mesmo o Estado mais pequeno possa esperar
a sua segurança e o seu direito não do seu próprio poder ou da sua decisão
jurídica, mas unicamente dessa grande federação de nações". A necessidade
- continuava - "forçará os Estados (por mais que isso lhes custe) a tomar
uma resolução a que se sentem já forçados os próprios indivíduos, isto é: a
prescindirem da sua brutal liberdade para conseguirem tranquilidade e segurança
numa constituição legal".
Por isso - e eu digo justamente
"por isso" -, desde os tempos apostólicos, o cristianismo se opôs ao
princípio do nacionalismo da religião judaica, alimentando assim a aspiração a
uma comunidade de nações e de povos, de que vinha falando desde o séc. VIII aC
o profeta Isaías e todos os mais que se lhe seguiram.
E é nessa direcção que temos que
seguir. Por mais que digam alguns políticos de algumas nações que é noutra.
Com João XXIII dizemos: "As Nações
Unidas propõem-se como fim essencial defender e consolidar a paz das nações,
fomentando entre elas relações de amizade, baseadas nos princípios de
igualdade, respeito mútuo e múltipla cooperação em todos os sectores da
actividade humana" (PT 142).
E com Paulo VI: "A vossa vocação,
dizíamos nós aos representantes das Nações Unidas, em Nova Iorque, é a de
levardes a fraternizar não alguns só mas todos os povos. … Quem não vê a necessidade
de se chegar assim, progressivamente, ao estabelecimento duma autoridade
mundial, em condições de agir no plano jurídico e político?" (PP 78).
E João Paulo II? Reconhecendo embora
que "as Nações Unidas ainda não conseguiram construir instrumentos
eficazes, alternativos à guerra, na solução dos conflitos internacionais",
afirma sem hesitar que, com a Organização, "cresceu não só a consciência
do direito dos indivíduos mas também a das nações, enquanto se adverte mais
claramente a necessidade de actuar para sanar os graves desequilíbrios entre as
diversas áreas do mundo, o que transferiu, em certo sentido, o centro da
questão social do âmbito nacional para o nível internacional" (SRS 21).
(E não é verdade que toda esta DSI é
diferente da "prática" de exibir "desenhos animados" antes
dos filmes já devidamente programados, mesmo quando muitos afirmam que "a
ameaça brandida por Pyongyang é muito mais urgente do que a que representa
Bagdad, muito mais controlada"?)
2. Uma
muito breve referência à Família
Muitas vezes ao longo de toda esta
reflexão que leva 112 anos após a Rerum
Novarum, se falou da família. Claro que se começou por afirmar o direito de
todos os trabalhadores a constituírem família. Nem se pense que estou a dizer
uma enormidade ou uma verdade de "La Palisse". Ainda hoje há
muitos(as) trabalhadores(as) que, por exemplo, não têm direito a ter filhos
pois que, se engravidarem, vêm para a rua. Começou-se por aqui. Os operários
vinham do campo para a fábrica, e as famílias ficavam lá, no campo. Já aqui
referi a afirmação do historiador que diz que ao operário restava o prostíbulo
e a taberna.
Mas logo a DSI se preocupou em afirmar
que o operário tem direito a "receber um salário suficiente para acorrer
com desafogo às suas necessidades e às da sua família" que lhe permita
mesmo "ir juntando uma pequena poupança que lhe permita, um dia, adquirir
um modesto património" (RN 33). Muito haveria a comentar destas
afirmações. Não havia reforma nem previdência, e daí que o salário tivesse de
dar para viver e poupar, num tempo em que o empregador se não preocupava com
estas dimensões do trabalho assalariado pois o que pretendia era pagar o menos
possível.
Quarenta anos depois, Pio XI não diz
muito diferente:
"Ao operário deve dar-se
remuneração que baste para o sustento seu e da família. É justo que toda a
família, na medida das suas forças, contribua para o seu sustento, como vemos
que fazem as famílias dos lavradores e também muitas dos artesãos e pequenos
comerciantes. Mas é uma iniquidade abusar da idade infantil ou da fraqueza
feminina [este texto tem 71 anos!) …
Deve pois procurar-se por todos os meios que os pais de família recebam uma
paga suficientemente abundante para cobrir as despesas normais da casa. E se as
actuais condições não permitem que isto se possa efectuar sempre, exige contudo
a justiça social que se introduzam quanto antes as necessárias reformas, para
que possa assegurar-se tal salário a todo o operário adulto" (QA 71).
Noventa anos passados, a Laborem Exercens (1981):
"A justa remuneração do trabalho
das pessoas adultas com responsabilidades familiares é a que for suficiente
para fundar e manter dignamente a família e para garantir o seu futuro. Tal
remuneração poderá efectuar-se ou por meio do chamado salário familiar, isto é,
um salário único atribuído ao chefe de família pelo seu trabalho e que seja
suficiente para as necessidades da sua família…, ou então por meio de outras
medidas sociais, comos sejam abonos de família ou subsídios para as mães que se
dedicam exclusivamente à família, subsídios estes que devem corresponder às
necessidades efectivas, quer dizer, ao número de pessoas a seu cargo e durante
todo o tempo em que elas não estão em condições de assumir dignamente a
responsabilidade da sua própria vida" (LE 19).
Referem-se aqui obrigações que os
estados modernos assumiram, por obrigação de justiça, com maior ou menos
capacidade ou vontade.
Do básico direito de constituir família
e preocupações de tipo mais socializante, eis o percurso do mundo do Trabalho,
da reivindicação operária e da própria DSI neste já longo percurso. Claro que
conquista de uns e cedência de outros, com o Estado pelo meio a arbitrar, nem
sempre bem, e com contributos de muitas partes.
A DSI não é uma teoria de sacristia,
mas uma reflexão feita no caminho das dificuldades da Questão Social, um
caminho partilhado com muitos outros "homens de boa vontade", como
diria João XXIII.
3. O
mundo da Economia
Digamos que tanto os filósofos da
Antiguidade como os teólogos escolásticos medievais se esforçaram por
introduzir critérios éticos no mundo da economia, ou seja, leis sobre o preço
justo, a proibição da usura, etc. Sempre a justiça como um valor. Ainda nos
séculos XVII e XVIII, os comerciantes e outros agentes económicos prestavam a
maior atenção às reflexões dos moralistas, preocupados em gerir a sua
actividade digamos que com honradez.
Foi precisamente este último século que
alterou as regras: Sileant theologi in
munere alieno (calem-se os teólogos neste terreno que lhes é alheio). Se os
economistas soubessem hoje latim, repetiriam a afirmação!
A aparição do capitalismo provocou uma
ruptura entre a economia e a ética, ao afirmar que a vida económica se rege por
leis que lhe são intrínsecas, análogas às que regem os fenómenos físicos,
químicos ou biológicos. Basta deixá-las funcionar com inteira liberdade. O
francês Gournay cunharia a célebre afirmação: "Laissez faire, laissez
passer, le monde va de lui-même" (Deixai fazer, deixai passar, que o mundo
caminha por si). Claro que aqui deixar
fazer queria dizer deixar produzir sem qualquer entrave ou norma imposta à
iniciativa privada (actividade produtiva, depois industrial), e deixar passar referia-se à livre
circulação de produtos, isenta de impostos. Um seu contemporâneo comentava:
"Que felicidade e alívio para o homem saber-se livre de qualquer
responsabilidade moral; as coisas compõem-se por si mesmas!".
Naturalmente, impôs-se a ideia de que,
neste campo, não tinha sentido nenhum aplicar qualquer categoria ética de
justiça ou injustiça. Adam Smith (1723-1790), o pai do capitalismo liberal,
defendeu, portanto, que o lucro devia ser o único motor da actividade
económica, acreditando que a sua "mão invisível" faria desaguar os
múltiplos egoísmos ou interesses particulares no Bem Comum. O que não aconteceu,
pelo contrário, como sabemos todos: "Vemos que a economia actual está
chagada de vícios gravíssimos" - escrevia Pio XI em 1931.
Digamos que a economia moderna nunca se
entendeu bem com a moral. Mas é verdade que nunca há um conflito apenas num
sentido. Por isso também os economistas têm queixas dos moralistas, acusando-os
de não perceberem nada… de economia. Nessa linha, quando João Paulo II publicou
a encíclica Sollicitudo Rei Socialis
1987), alguns economistas escreveram-lhe uma carta a dizer, entre outras coisas,
que, "para que a sollicitudo rei
socialis [a solicitude pela questão social] sirva o bem comum deve
fundamentar-se numa sapientia rei
economicæ [conhecimento da ciência económica] que modernamente lhe
falta".
Por isso, muitos economistas se riem
dos esforços por fazer vingar critérios éticos no mundo da economia,
continuando a defender que o mundo económico se rege a si mesmo e por si, sem
precisar de boas intenções. Pregar à economia é a mesma coisa que dizer a um
carvalho que dê laranjas em vez de bolotas! "O desenvolvimento económico
só funciona se ele respeitar as suas leis específicas e não obedecendo aos
princípios da teologia cristã ou muçulmana", diziam os mesmos economistas
na citada carta ao Papa. Teriam estes economistas razão se a economia fosse uma
questão apenas técnica.
No entanto, como qualquer estudante
desta ciência sabe, a economia costuma definir-se como o conjunto das
actividades humanas dirigidas à obtenção de bens e serviços - mediante a
sua produção e intercâmbio - num contexto
de escassez. Este último elemento da frase - num contexto de escassez - é
muito importante.
Não vivemos na terra onde corra o leite
e o mel. E por isso a actividade económica caracteriza-se por uma permanente
tensão entre necessidades ilimitadas e meios limitados para lhes responder, o
que faz com que seja praticamente impossível eliminar o factor conflitualidade no processo de
atribuição dos recursos disponíveis aos diversos fins alternativos que os
reclamam (isto é muito simples de dizer de uma maneira mais clara: o dinheiro
que temos lá em casa, não dá para tudo, só dá para o que dá, e portanto
"se não há dinheiro não há tauças").
Para além disso, é praticamente
impossível na prática desenvolver qualquer política económica sem, de algum
modo, seja como for, mexer na distribuição do produto (dos ganhos ou lucros)
pelos cidadãos. Ou seja: uma política económica, qualquer que ela seja, implica
sempre que uns ganhem mais e que outros ganhem menos. Pior ainda: normalmente
são sempre poucos os que ganham mais, e muitos os que ganham menos. E, para
acabar, mesmo que uma determinada política fizesse alguns mais ricos sem fazer
ninguém mais pobre, mesmo assim haveria queixas: porque é que alguns se
tornaram ricos e eu, e muitos como eu, não?
É precisamente por isto, porque os
recursos escassos obrigam a opções concretas, que a ética tem a ver com as
políticas económicas. Alguns exemplos concretos: deixamos os aviões atingir os
níveis de ruído que entendem nas imediações de um aeroporto, tornando a vida
dos vizinhos um inferno, ou obrigamo-los a reduzir as cargas e o número de
passageiros, o que, entretanto, encarece o transporte aéreo?; conservamos um
bosque de carvalhos ou construímos onde ele existe uma auto-estrada ou uma
fábrica ou até só uma escola?; permitimos que o trânsito continue a passar pelo
meio da aldeia ou constrói-se uma circunvalação à custa do erário público? As
barragens servem para armazenar a maior quantidade possível de água para
produzir energia, ou têm também a ver com a regularização do caudal dos rios?;
então porque é que hoje em dia há mais cheias que há 20 anos atrás? Etc, etc.
Por tudo isto, dito assim tão
simplesmente, é que em economia é necessário apontar o que é da competência dos
moralistas e o que pode ou deve ser decisão dos economistas:
1. Dada a escassez de recursos em que o
homem vive, é necessário antes de mais determinar que fins deve a
actividade económica ter diante de si. E isto é competência dos moralistas (dos
moralistas e dos políticos, que a Política não pode ser exercida à margem da
Moral e do Direito). Aqui, os economistas devem estar calados. Dou um exemplo.
No Brasil, 10% da população detém 50% da riqueza nacional; e 50% da população
detém apenas 10% da riqueza. Perante isto, o novo governo escolhe uma
prioridade, a operação "Fome Zero", isto é: que o mais rapidamente
possível, todos os brasileiros tenham pequeno almoço, almoço e jantar todos os
dias. Esta é uma questão de justiça (portanto da ordem da moral ou da ética)
que o governo tomou.
2. No entanto, se o governo fizesse um
referendo entre os economistas brasileiros, junto do FMI ou do Banco Mundial e
mesmo junto dos nossos comentadores de rádio e televisão, a grande maioria
diria "isso não é possível" (claro que não é possível porque eles não
querem ou não deixam; não falta dinheiro no Brasil para que isso seja
possível).
É que, depois de determinar os fins de
uma política económica, é preciso estudar os meios para os atingir. E
este estudo, de facto, e sua aplicação compete aos economistas não aos
moralistas (conta-se a história de um moralista que, a fim de arranjar dinheiro
para o erário público, propôs: uma vez por mês, entre os 17 e os 70 anos, todas
a gente faz jejum!). Mas os economistas têm de estudar os meios em função das
decisões já tomadas por outros.
3. Finalmente, e dado que os fins não
justificam os meios, logo que os economistas hajam proposto meios eficazes será
necessário discernir se todos são legítimos, e decidir por quais. E isto
volta a ser da competência da moral e da política, e não da economia.
Sabemos que, desgraçadamente, nem
sempre ou quase nunca se respeitam as competências. Hoje, neste campo da
economia, são quase sempre os economistas a determinar os fins a atingir e os
meios a utilizar, sem se preocuparem os economistas com a legitimidade destes
últimos, invadindo portanto o campo da ética e ignorando o da política. E, no
entanto, quando a economia diz que "não é possível" - vejamos o que
vai ser da operação "Fome Zero" no Brasil - ela quer é dizer
"possível é, mas eu não quero"!
4. Economia
ou política: quem tem a primazia?
Dizia no domingo passado que a
subordinação da economia à moral se realiza por mediação da política.
É verdade que, com os desastres que
conhecemos ou vivemos no século passado, e que muitos povos amargam ainda, temos
alguma dificuldade em aceitar que seja o poder político a obrigar-nos a ser
minimamente solidários uns com os outros, tal medo apanhámos às economias
colectivizadas como as que sabemos do Leste europeu. E mesmo que admitamos que
em algumas não tenha havido nem fome nem desemprego, isso custou a liberdade
individual e mesmo a eficácia do sistema.
Este é um perigo real. Por isso se
apontam quatro cautelas a ter com a política ou que a política deve ter:
1. Que o poder político a quem se pede
vigie a economia seja um poder democrático, isto é, eleito pelo povo e sujeito
a formas de controlo estabelecidas constitucionalmente. Este segundo elemento
deve mesmo ser mais eficaz que o primeiro. Já Popper, o filósofo vienense,
perguntava: "Como podemos organizar as nossas instituições políticas de
modo a que os governantes maus ou incompetentes, que não devíamos eleger, mas
que, infelizmente, tantas vezes elegemos, não possam causar muitos
danos?".
2. A planificação da economia deve ser
feita ouvidas as distintas forças e parceiros sociais.
3. Feita a planificação da economia e
institucionalizadas umas exigências mínimas de solidariedade, o poder político
não deve (não pode) pretender legislar em todos os âmbitos da sociedade, pois
que isso levaria facilmente a um totalitarismo asfixiante. Imagine-se legislar
sobre o comprimento das saias ou o género de alimentos a ingerir! Os poderes
públicos só podem impor coactivamente aquelas exigências éticas cujo
incumprimento dificultaria notavelmente a convivência dos cidadãos. E este é,
sem dúvida, o caso da solidariedade económica.
4. Finalmente, nem sequer devem ser
incluídas nesta planificação todas as exigências da uma ética solidária: o
Estado não pode, por exemplo, dizer-me quanto é que eu devo dar para a Partilha
Fraterna. O bom governante sabe que a política é sempre a arte e a ciência do
possível.
Mais concretamente então, que problemas
económicos fundamentais tem a economia a resolver?
1. Que
bens e em que quantidade se hão-de produzir? Roll Royce's para os 10% mais ricos
da população brasileira ou refeições para os brasileiros que não têm que comer
diariamente?
Dizia há oito dias que a actividade
económica se caracteriza por uma permanente tensão entre umas necessidades
ilimitadas e uns meios limitados para lhes responder. Os animais, não. Esses
comem o bastante, disfrutam e descansam. Os homens, somos muito mais
complicados: estamos sempre a inventar, ou estão sempre a inventar-nos
necessidades novas e mais sofisticadas. Quem precisava de telemóveis há apenas
10 anos? Hoje, não é preciso comentar.
Antes de mais nada, é preciso produzir
aqueles bens que respondem a necessidades humanas autênticas:
"a finalidade fundamental da
produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poder, mas o
serviço do homem e do homem integral, tendo em conta a ordem das suas
necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral,
espiritual e religiosa; necessidades de todos os homens ou grupos de homens, de
qualquer raça ou região do mundo" (GS 64).
É isto que acontece? De facto, a lógica
da economia moderna é outra: produzir por produzir, ganhar dinheiro por ganhar
dinheiro, aumentar a empresa por aumentar a empresa. Ford, o célebre construtor
americano de automóveis, perguntado porque desenvolvia a sua empresa,
respondia: "porque não posso parar".
Mais ainda. Dado que os recursos são
escassos, não basta dizer que a finalidade da produção deve satisfazer
necessidades humanas. É necessário estabelecer prioridades nessas necessidades,
produzir umas coisas e deixar de produzir ou diminuir a produção de outras. Não
dizem que o mercado de habitação português está, neste momento, cheio de casas
que se não vendem?
E há necessidades que constituem
verdadeiros direitos humanos:
"todo o ser humano tem direito à
existência, à integridade física, aos meios indispensáveis a um nível de vida
digno, ou seja, à alimentação, ao vestuário, à habitação, ao descanso, aos
cuidados médicos e aos serviços sociais necessários. Daqui o direito à
previdência em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de
desemprego ou de qualquer outra eventualidade de perda de meios de subsistência
por circunstâncias alheias à sua vontade! (PT 11).
Em resumo: que bens e em que quantidade
se hão-de produzir? Trata-se antes de mais de uma questão de justiça a que é
necessário responder com a "arte da política".
2. Como
produzir? Segundo João XXIII, "quando as estruturas, o funcionamento e
o condicionalismo dum sistema económico comprometem a dignidade humana dos que
nele trabalham e entorpecem sistematicamente o sentido da responsabilidade ou
impedem que a iniciativa pessoal se manifeste, tal sistema é injusto, mesmo se,
por hipótese, a riqueza nele produzida alcança altos níveis e é distribuída
segundo as regras da justiça e da equidade" (MM 83).
Como produzir? Pomos as crianças a
trabalhar? Tratamos os emigrantes como nos trataram a nós em França no século
passado?
Como produzir? Muitos terão visto a
antológica cena do filme Tempos Modernos
em que Charlot de tantas porcas apertar, porque esse era exclusivamente o seu
trabalho, até a desapertar os botões do vestido de uma senhora o fazia com o
gesto do desapertador de porcas!
O trabalho em cadeia e as máquinas
fizeram muitas vezes do trabalhador um animal embrutecido e desumanizado. E se
o homem se pode exprimir pelo seu trabalho, hoje em dia "quase todos
desempenhamos tarefas que resultam demasiado pequenas para o nosso
espírito", como dizia um operário.
Há praticamente 250 anos, Adam Smith
descreveu a fabricação de um alfinete: até ao seu tempo, cada operário, que
procedia sozinho às 18 operações necessárias à fabricação de uma peça, só
produzia 20 alfinetes por dia; mas ele um dia visitou uma fábrica de alfinetes
onde 10 operários, cada qual especializado apenas em uma ou duas das 19 operações,
produziam 48.000 alfinetes por dia, ou seja, à média 4.8000 por trabalhador!
Claro que os trabalhadores substituídos pela máquina benéfica foram mandados
para a rua e ninguém mais se preocupou com eles.
É preciso re-humanizar o processo de
produção: "a produtividade não é um fim em si mesma" (Pio XII). Para
além disso, é preciso oferecer a todos a possibilidade de participar no
processo de produção, porque o trabalho não é apenas um meio de ganhar a vida,
mas sim uma forma de realização humana e de serviço aos demais. Todos os homens
e mulheres, para se sentirem úteis, têm direito ao trabalho. Uma economia que
mantenha desempregada - de-li-be-ra-da-men-te (para o que precisa de bancos de
desemprego) - uma parte importante da população activa não é uma economia
justa, nem que garanta a todos os desempregados subsídios bastantes para
satisfazer a suas necessidades.
Resumindo: como produzir, que meios
utilizar? É o papel da economia.
3. Para
quem produzir?, ou, como distribuir a produção nacional entre os indivíduos
e as famílias? Marx (1818-1883) respondeu: "De cada um segundo a sua
capacidade, a cada um segundo a sua necessidade". E Nietzsche (1844-1900)
respondeu: "Pregadores da igualdade que transtornais as almas! A minha
noção de justiça é esta: os homens não são iguais e tão pouco hão-de sê-lo no
futuro!".
A visão cristã do problema está muito
mais próxima de Marx que de Nietzsche. Por isso, desde o princípio que o
cristianismo condenou a desigualdade entre os homens que são irmãos e afirmou o
destino universal dos bens:
"Deus destinou a terra com tudo o
que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados
devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada
pela caridade. Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme às
legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis
circunstâncias, deve-se sempre atender a este destino universal dos bens"
(GS 69).
João Paulo II:
"Tanto os povos, como as pessoas
individualmente devem gozar de uma igualdade fundamental" (SRS 33).
Aqui, igualdade fundamental não quer dizer aritmética, pois excluiria a necessária
diversidade. João XXIII explicava isto muito bem:
"A experiência ensina que, entre
os seres humanos, existem diferenças, às vezes muito grandes, no grau do saber,
da virtude, nas capacidades do espírito e na abundância dos bens materiais. Mas
isto não pode nunca justificar o propósito de fazer valer a própria
superioridade para subjugar de qualquer modo os outros. Esta superioridade comporta,
pelo contrário, uma maior obrigação de ajudar os povos para que consigam, num
esforço comum, a sua própria perfeição" (PT 87).
Resumindo: para quem produzir? A
resposta é, mais uma vez, da política, regida pela Moral e pelo Direito, sempre
a Justiça como valor primeiro.
Como as nossas política e economia
deverão/terão de ser diferentes!
5. As
leis fiscais
"O Estado não tem conseguido
receber as receitas que, por Lei, lhe pertencem… E isto é fruto do
individualismo egoísta das pessoas e grupos. Até Jesus nasceu sujeito à Lei…
Devemos todos esforçar-nos para que as leis sejam justas e equilibradas. Mas
não pagar as contribuições sociais, previstas na Lei, é grave desordem moral e
causa de perturbação da paz social. Já o Concílio Vaticano II afirmara: 'Há
pessoas que, embora proclamando ideais largos e generosos, continuam a viver na
prática sem se preocupar com os deveres sociais. Mais, em alguns países, muitos
não fazem caso das leis e prescrições sociais. Um grande número não hesita em
subtrair-se, através de subterfúgios e fraudes várias, aos impostos justos e a
outras concretizações do que é socialmente devido' (GS 39)" - dizia o
Cardeal Patriarca de Lisboa na homilia do Dia Mundial da Paz de 2003.
Então que tem a ver o cumprimento das
obrigações fiscais com a DSI?
Nos séculos passados, o sistema
tributário visava apenas a financiamento de alguns serviços mínimos
indispensáveis (defesa nacional, tribunais, obras públicas, etc). Assim sendo,
a única hipótese que havia de tornar realidade o destino universal dos bens era
a esmola! Mas, já no séc. XX, entregou-se ao poder público uma segunda tarefa:
redistribuir pela sociedade a riqueza nacional em termos julgados justos.
A expressão "produto nacional" já vinha de séculos anteriores;
mas a novidade, consistiu em destinar ao Bem Comum parte da massa financeira
proveniente da contribuição de todos os cidadãos. Assim, hoje, os poderes
públicos institucionalizaram a solidariedade em múltiplos campos (educação,
assistência sanitária, previdência social, etc); por isso aumentou o
quantitativo da contribuição fiscal de cada cidadão.
Apesar disto, é do domínio público que
a fraude fiscal, um pouco em todos os países mas em Portugal de maneira
especial, como sabemos todos, é muito elevada. O espectáculo de que gozamos
todos, com reportagens televisivas sucessivas, à porta das nossas Secções de
Finanças, nos últimos dias do ano e primeiros do corrente, não disse outra
coisa: são tantos os que não cumprem que nem o Estado sabe quantos nem quais!
Por isso muitos continuam a perguntar-se até que ponto estão obrigados
eticamente a cumprir as suas obrigações fiscais. Comam todos ou haja
moralidade!
No séc. XIII apareceu uma teoria, que
se manteve até ao XX, que pretendia que as leis fiscais era "meramente
penais", isto é, não obrigavam em consciência: ainda há pouco mais de um
mês, um conhecido presidente de um conhecido clube de futebol que não pagava
impostos, tendo sido um dia descoberto, foi pagá-los a correr no dia seguinte
de manhã, com juros de mora e tudo, e tudo bem, não aconteceu mais nada.
Hoje já ninguém pensa que as leis
fiscais são "meramente penais". Os moralistas concordam em que elas
obrigam em consciência, quando são justas. Na Igreja - é preciso que se diga -
sempre se pensou assim também, desde S. Paulo: "É necessário submeter-se
às leis, e não só por medo do castigo, mas também por razões de consciência. É
por essa razão que pagais impostos" (Rom 13,5-6). No próprio Concílio
Vaticano II chegou a pedir-se que se declarasse solenemente que as leis fiscais
obrigam em consciência mas a ideia não teve seguimento. No entanto, no
Catecismo Universal, está lá com as letras todas que é moralmente ilícita a
fraude fiscal (n.os 2240 e 1409).
Isto dito, apenas é preciso saber
quando é que uma lei fiscal é justa para sabermos quando é que obriga em
consciência.
Respondem os moralistas:
1. Quando a contribuição foi
estabelecida pela autoridade legítima. Há, por exemplo, movimentos terroristas
ou outros que obrigam ilegitimamente cidadãos ou populações ao pagamento de impostos.
2. Quando a contribuição tem por fim
obter os recursos necessários para atender às necessidades do Bem Comum. Aqui
há que ter em conta duas coisas. Em primeiro lugar, que a carga fiscal não seja
tão forte que estrangule a economia do país ou desincentive o esforço de
produção de riqueza (também aqui é preciso recordar que a política é a arte do
possível). Em segundo, que os poderes públicos devem respeitar sempre o
princípio da subsidiariedade, ou seja, que há coisas que é melhor não ser o
Estado a tratar delas, mas sim outras instâncias a ele inferiores, que as
cuidarão certamente melhor e com menos custos.
3. Que a gestão dos dinheiros públicos
seja feita com suficiente eficácia e honradez. Como dizia Pio XII, "jamais
o imposto pode converter-se para os poderes públicos num cómodo meio de
equilibrar o déficit provocado por uma governação indevida. (…) Ao Estado
proíbe-se o esbanjamento dos fundos públicos. (…) A eficácia da uma
administração cuidadosa e íntegra há-de demonstrar com clareza que o sacrifício
imposto corresponde a um serviço real e que produz os seus frutos".
(Num "comentário
interessante" à homilia do Sr. Cardeal e ao discurso de Ano Novo do Sr.
Presidente da República, neste ponto coincidentes, o jornalista observava que
"nenhum deles [Presidente e Cardeal] se pergunta por que razão os
portugueses não pagam impostos. Pior ainda: por que razão não acham um pecado
ou uma falta de civismo não pagar impostos? Será que o Estado não lhes presta
serviços que justifiquem o dinheirinho que lhes tira? Ou será que o Estado se
tornou o exemplo por excelência do esbanjamento e da desordem?").
4. Que as contribuições sejam adequadas
às possibilidades de cada contribuinte: "A distribuição dos impostos
segundo a capacidade económica dos cidadãos é princípio fundamental dum sistema
tributário justo e equitativo" (MM 132). Mais ainda: a capacidade económica de que fala a MM
exigiria que os que de todo não têm possibilidade de pagar impostos fossem
disso dispensados e que, pelo contrário, aos mais poderosos economicamente se
deveriam aumentar progressivamente as contribuições. E progressivamente quer dizer que não basta proporcionalidade mas
progressividade. Se a contribuição aumentar apenas proporcionalmente aos ganhos
de cada contribuinte, nunca mais se alteraria a situação relativa dos distintos
grupos sociais, ou seja, os impostos apenas continuarão a arrecadar dinheiro
(teoricamente necessário para o Bem Comum) consagrando uma situação de
injustiça e sem o redistribuir (entre os cidadãos).
Para terminar convém recordar que a
partilha cristã de bens não se cumpre com a mera honradez fiscal, exige também
dos crentes um desprendimento voluntário que está muito para além das leis.
6. Os
sistemas económicos
Depois de uma breve introdução sobre a
actividade económica em geral, digamos agora alguma coisa sobre os sistemas
económicos modernos.
Foram dois os que disputaram o mundo: o
capitalismo e o socialismo. A sua diferença básica estava na propriedade dos
meios de produção: privada no capitalismo, colectiva no socialismo. Para além
disso, em termos genéricos, o capitalismo,
como já aqui disse, confiava no mercado para regular o conjunto da economia; o
socialismo não, pensava piamente que só o Estado podia planificar a economia.
Isto capitalismo e socialismo em estado puro. Porque, na prática, o capitalismo
foi admitindo elementos ou áreas de planificação do Estado, e o socialismo
começou a dar maior ou menor protagonismo ao mercado.
O primitivo capitalismo - tal como hoje
o chamado neo-liberalismo - considerava a propriedade privada dos meios de
produção como um direito absoluto. O célebre artigo 544 do Código de Napoleão
dizia assim: "A propriedade é o direito de disfrutar e dispor das coisas
da maneira mais absoluta, em tudo o que não esteja proibido pelas leis e
regulamentos".
Desta absolutização do direito de
propriedade privada derivam todas as mais notas características do capitalismo:
1. A busca do lucro pessoal é o motor
da actividade económica. Uma vez que a propriedade privada é um direito
absoluto, o capitalismo não tem que se preocupar com o Bem Comum; deve
procurar, sim e apenas, o seu próprio enriquecimento. Um célebre empresário,
Alfred Sloan, muitos anos à frente da General Motors, explicava assim: "Ao
fazer um investimento de capital o primeiro propósito é o estabelecimento de um
negócio que pague dividendos satisfatórios e preserve e aumente o valor do
capital. Portanto, o objectivo primário da General Motors é, e assim o
declaramos, fazer dinheiro e não apenas automóveis". Isto não quer dizer que
o capitalismo negue as necessidades do Bem Comum. Só que, diz ele, pensar no
Bem Comum não compete ao capital. Explicava assim em 1776 o nosso já conhecido
Adam Smith: "Ninguém, em geral, se propõe promover o interesse público,
nem sabe até que ponto o promove. Pensando cada um nos seus ganhos, todos somos
conduzidos por uma mão invisível que
faz com que as intenções de cada um não sejam travadas. Portanto, ao procurar o
seu próprio interesse, promove-se a sociedade de uma maneira mais efectiva do
que se esta finalidade entrasse nos propósitos de cada um".
2. Assim sendo, a economia deve
regular-se exclusivamente pela livre concorrência. O proprietário dos meios de
produção tem poder absoluto de decisão, e nem o Estado nem os trabalhadores têm
direito de intervir; seria um abuso se o fizessem, porque o capitalismo
auto-regula-se automaticamente: o mercado livre é assim uma peça chave deste
sistema. Os preços são ajustados pela lei da oferta e da procura. Se há só um
operador telefónico, os preços são altos; se são vários, baixam todos.
Claro que em nenhuma parte do mundo o
capitalismo existe ou existiu neste estado do pureza, digamos. Depois da 2ª
Guerra Mundial o economista Keynes (1883-1946) introduziu-lhe mesmo importantes
correcções: pensava ele que efectivamente o capitalismo não se auto-regulava
tanto assim nem conseguia responder às necessidades do Bem Comum. Portanto o
Estado devia intervir, parcial e moderadamente (nas políticas monetárias, nos
investimentos públicos, na redistribuição da riqueza, num sistema de segurança
e previdência social, etc). Estas correcções foram tantas e tão grandes que
muitos pensaram que se tratava já de um sistema novo; no entanto, a propriedade
privada dos meios de produção continuou privada, tendo embora deixado de ser um
direito absoluto e se lhe tivessem imposto certas obrigações.
Face a este posicionamento e
combatendo-o, em nome dos mais pobres, levantou-se um sonho, o socialismo.
Existem muitos tipos de socialismo,
todos eles baseados na propriedade colectiva dos meios de produção.
Limitar-me-ei a referir o único que conseguiu uma verdadeira implantação, o
marxista.
Marx acreditou piamente que o
capitalismo acabaria por se destruir a si próprio dando assim um verdadeiro
"tiro no pé": "a violência [do capitalismo] - dizia Marx - é a
parteira de toda a sociedade velha mas traz nas suas entranhas uma sociedade
nova". Falava por isso de um período transitório a que chamava a sociedade
socialista, em cuja vivência o Estado - três coisas - devia apropriar-se do todos
os meios de produção evitando assim a exploração dos trabalhadores, o mercado
livre deveria ser substituído pela planificação central da economia, e o
partido comunista seria entretanto obrigado a governar de forma totalitária
para defender e consolidar o novo sistema (a chamada "ditadura do
proletariado").
Assim sendo, enquanto vigorasse
provisóriamente a sociedade socialista, seria necessária uma autoridade férrea
na vida política e nas relações laborais: "Querer abolir a autoridade na
grande indústria - dizia Engels (1820-1895) - é querer abolir a própria
indústria, é querer abolir as fábricas de fiação a vapor para se tornar ao fuso
e à roca". Mas tudo isto seria transitório, repito. Entretanto, o
capitalismo daria o berro por força das suas incapacidades internas. Uma vez
consolidada a evolução da sociedade, desapareceria a ditadura do proletariado e
começaria a sociedade comunista, a última e definitiva etapa da história da
humanidade.
Do ponto de vista económico, esta
sociedade comunista não só conseguiria a perfeita socialização de todos os
meios de produção, mas também a dos bens de consumo. E por fim "a
sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: de cada um segundo as suas
capacidades, e a cada um segundo as suas necessidades" (Marx).
Sinónimo de máquina utilizada pela
classe dominante para manter controlada a classe dominada, "o Estado será
colocado num museu de antiguidades, juntamente com a roca e o machado de
bronze" da pré-história (Engels). Uma vez desaparecidas as classes, fará
falta alguma coordenação, mas isso conseguir-se-á não através do Estado, mas do
Partido.
E então aparecerá o homem em toda a sua
verdade: "A sociedade encarregar-se-á de regular a produção em geral, e
cada um se poderá então dedicar-se inteiramente hoje a isto, amanhã àquilo, de
manhã poderá caçar, de tarde pescar, e ao cair da noite apascentar o gado; e
depois de comer, se isso lhe agradar, poderá exercer a crítica sem que,
portanto, tenha necessidade de ser exclusivamente caçador, pescador, pastor ou
crítico" (Marx-Engels).
Para sonho não estava mal. Por isso
seduziu. Saibamos todos que Marx era judeu. Transportou para o mundo da
sociedade e da economia, a visão escatológica de Isaías, retirando-lhe porém
toda a carga simbólica e sacramental. Por isso deu no que deu.
6.1. O
comunismo marxista e coletivista
O projecto marxista despertou por todo
o mundo esperanças quase religiosas. A de Pablo Neruda, por exemplo: "Amei
à primeira vista a terra soviética e compreendi que dela saía uma lição moral
para todos os rincões da existência humana (…). A humanidade inteira sabe que
se está ali a elaborar a gigantesca verdade e que há no mundo uma intensidade
atónita esperando o que vai acontecer".
No entanto, bastaria para desconfiar o
simples facto de, em 1961, ter sido necessário construir um muro de tijolos
para que os cidadãos não fugissem para Ocidente. 1989 diria o resto.
Marx pensava que, ao suprimir-se a
propriedade privada dos meios de produção desapareceriam as classes sociais, e
o trabalho experimentaria uma transformação substancial. Mas um operário polaco
diria tudo um pouco mais tarde: "no capitalismo o homem explora o homem;
no comunismo é ao contrário"! Em 1980, 4 meses depois de terem sido
legalizados na Polónia, os sindicatos livres Solidariedade tinham já 10 milhões
de sindicalizados, numa população de 14 milhões de trabalhadores. Efectivamente
o Estado carecia do título de legitimidade que se atribuía, que era o de
representar os interesses da classe operária.
De facto, o colectivismo não foi capaz
de criar uma alternativa ao capitalismo, e limitou-se a implementar um
capitalismo de Estado que, como mostrou a sua ineficácia económica, funcionava
pior que o capitalismo ocidental. Primeiro, foi-lhe sempre muito difícil
organizar-se no contexto internacional capitalista; para além disso, a
planificação central demonstrou-se pesada, lenta, e ineficaz. É a famosa tese
de Bujarin; "é difícil construir edifícios com tijolos que ainda não estão
fabricados"; finalmente porque, progressivamente, alimentou atitudes cada
vez mais passivas na população, pois que - disse depois João Paulo II -
"não é lícito do ponto de vista ético nem praticável menosprezar a
natureza do homem, que está feito para a liberdade. Numa sociedade cuja
organização reduz arbitrariamente ou até suprime a esfera em que a liberdade
legitimamente se exerce, o resultado é que a vida social progressivamente se
desorganiza e definha" (CA 25b).
Chegamos assim a uma constatação de
facto: o marxismo assentava num tremendo "erro antropológico".
Tentando substituir os incentivos económicos, característicos do capitalismo,
por incentivos morais, tiveram de concluir os seus ideólogos que estes não
tinham a mesma eficácia que aqueles. Marx e Engels acreditaram no surgimento de
um "homem novo", despojado de todo o egoísmo, cidadão de elevados
níveis morais, disposto a sacrificar-se pela causa do comunismo. Mas não foi
assim. O mistério do mal no mundo requer uma explicação mais profunda que a
economia não é capaz de dar. Para além disso, o marxismo revelou digamos que
uma tendência inata para a ditadura. Ao necessitar de homens novos, se eles
realmente não existiam, não vai a bem vai a mal. E a ditadura do proletariado,
pensada como etapa transitória, rapidamente se tornou definitiva. E isto sem
falarmos em corrupção e arbitrariedade, e sem referirmos essa pobríssima
antropologia que foi "o vazio espiritual provocado pelo ateísmo" (CA
24b).
Cedo a DSI começou a denunciar o
equívoco. Leão XIII disse do socialismo em geral apenas que "contra a
natureza todos os esforços são vãos" (RN 13); Pio XI falava em 1931 da
"impiedade e iniquidade do comunismo" (QA 112) mas em 1939 dizia-o já
"intrinsecamente perverso" (Divini Redemptoris 58). João XXIII
é o homem da mudança: dizia ele ser necessário "distinguir entre o
erro e aquele que o professa", portanto "entre as teorias filosóficas
falsas … e as correntes de carácter económico e social, cultural e político,
mesmo que tenham a sua origem e impulso em tais correntes filosóficas"
(PT, 159). No Vaticano II, uma minoria pretendeu a condenação formal do
comunismo, mas tal não veio a acontecer; em época já de verdadeiro diálogo, o
Concílio apenas afirmaria que "rejeita inteiramente o ateísmo" (GS
21), fazendo embora veladas alusões à economia colectivista (GS 63). Retomando
este pensamento e o de João XXIII, Paulo VI diria mais: "Não perdemos a
esperança de que eles [os marxistas, que perseguem "um sonho de justiça e
de progresso a serviço de finalidades sociais divinizadas"] venham um dia
a entabular com a Igreja um colóquio positivo" (ES 97 e 98). Na OA admite
mesmo uma certa desintegração do marxismo (30-31). João Paulo II retomaria todo
este pensamento logo na LE mas sobretudo na CA, caídos entretanto os regimes de
Leste, debruçando-se sobre os seus maiores erros (o erro antropológico da concepção
marxista do Homem, simples elemento do organismo social, e a consequente
concepção da sociedade, praticamente reduzida ao Estado; o ateísmo; a luta de
classes entendida como meio essencial de acção; e a concepção da liberdade do
Homem), bem como sobre as principais causas da sua queda (violação dos direitos
dos trabalhadores e ineficácia do sistema económico).
Caídos os regimes marxistas, ocupou o
terreno apenas o capitalismo. Pode dizer-se que, desaparecido o mal, ficou só o
bem? É então que começa a falar-se de globalização. Nessa altura, já muitos
acusavam a DSI de ser mais dura para com o capitalismo liberal que para com o
marxismo colectivista. Mesmo assim, João Paulo II não deixava de afirmar:
"É inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado 'socialismo
real' deixe o capitalismo como único modelo de organização económica. Torna-se
necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixaram tantos povos à
margem do progresso, e garantir a todos os indivíduos e nações, as condições básicas
que lhes permitam participar no desenvolvimento" (CA 35).
6.2. O
capitalismo liberal
O economista Shumpeter explicava assim:
"A dona de casa pode influenciar a produção agrícola escolhendo no dia a
dia, para o almoço, ou lentilhas ou feijão verde". Dizendo doutra maneira,
os defensores do capitalismo dizem que nenhum outro sistema satisfaz melhor as
necessidades humanas porque os produtores, industriais, agrícolas ou de
serviços, se querem aumentar as vendas, têm de atender aos desejos dos
consumidores. Ou seja, teoricamente, liberalismo político e liberalismo
económico respondem à mesma lógica: do mesmo modo que em democracia os cidadãos
são soberanos e, ao dar o seu voto a um partido e não a outro, decidem quem vai
ser governo, na economia capitalista também os consumidores o são, pois que, ao
comprar com o seu dinheiro um qualquer produto, decidem o que deve ser
produzido.
Tudo isto é verdade, mas há que
relativizar. Antes de mais, porque as modernas técnicas de manipulação do
mercado (publicidade nomeadamente) condicionam boa parte do poder de decisão
dos consumidores, transferindo-o para os produtores. Depois, porque um grande
número de cidadãos, os que não têm poder de compra, não entram nestas contas.
Ou não é verdade que, em Portugal, nestes dias que correm, o negócio da
habitação está bom mas só o das casas de 40.000 contos para cima? Por isso,
Gilbert Cesbron, o escritor, dizia com razão: "Pago, logo existo!";
mas, se não pago, isto é, se nem sequer tenho dinheiro para comprar? Para além
disto, teoricamente, o empresário capitalista tem mais interesse em ganhar
dinheiro que pensar muito se vai produzir botões ou automóveis, se o que produz
é humanizador ou não, desde que o que ele fabrica dê dinheiro. Finalmente, ao
sistema capitalista, abandonado à sua própria lógica, não lhe interessa saber
dos direitos ou das necessidades de carácter colectivo, nomeadamente no diz
respeito ao ambiente: o criador de porcos despeja o seu lixo no rio, tal como
faz(ia) a fábrica de têxteis, e pronto. Basta ir ali ao Leça.
Claro que nem tudo é mau no
capitalismo: é inegável a sua capacidade de criar bens e riqueza, como aliás o
próprio Marx reconhecia ("Demonstrou o que pode conseguir a actividade
humana, levando a cabo obras maravilhosas totalmente diferentes das pirâmides
do Egipto, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas"). Mas é preciso
perguntarmo-nos a que preço, humano, social, ambiental e mesmo económico.
E se é verdade que a opressão dos
trabalhadores do primeiro capitalismo deu progressivamente lugar à elevação do
seu nível de vida, isso não se deve(u) às suas preocupações com a justiça,
antes com a pressão da luta operária em geral, dos sindicatos, e dos próprios
Estados. Todos conhecemos a história do 1º de Maio. E mesmo aqui, porque havia
interesses de ordem económica. O nosso conhecido Ford não escondia que
"Prefiro pagar bem aos meus operários para que eles me possam comprar
automóveis".
Algo parecido aconteceu com as
condições de trabalho. Já desapareceram aquelas desumanas jornadas de trabalho
de 14 ou mesmo 16 horas diárias que transformaram os operários em animais de
produção. Mas o que contou verdadeiramente para a sua diminuição foi o ter-se
começado a constatar que o bicho-homem trabalha mais e melhor se diminuir o
número de horas laborais. Mesmo assim, e sabendo nós que o motor da actividade
económica é o lucro, a gente vê o que acontece quando a empresa deixa de
necessitar do trabalhador. Basta vir uma máquina nova. Porque nunca foi
valorizado como pessoa humana apenas como mão de obra, rua! E isto, hoje, até o
Estado, que devia ser o tal árbitro, faz. Porque o Estado também é patrão e se
não quer propriamente lucros, também ele tem de administrar. Ou basta a empresa
espreitar lugar de mão de obra mais barata, seja no Leste ou na Cochinchina:
estou a falar das fábricas Clarks, de Arouca e Castelo de Paiva.
Eu sei que sou simplista nesta rápida
fotografia do capitalismo liberal. Mas pode de facto resumir-se tudo numa
palavra: o lucro é, para ele, o verdadeiro motor da actividade económica. E a
consequência é óbvia: as empresas necessitam de ter lucros, porque senão têm de
fechar. E nisto até podemos estar de acordo: agora o que elas não podem é
ignorar o Bem Comum, não podem funcionar só para conseguir lucros e quantos
mais melhor, a qualquer preço. Porque uma coisa é que uma actividade económica
em geral deva ter lucro; outra que o lucro seja a única finalidade da
actividade económica, e a qualquer preço. E todos sabemos que há actividades de
que o Bem Comum necessita que não só não dão lucro como até geralmente custam
muito dinheiro. Quem olhará por isto? A empresa capitalista? O Estado? A
Autarquia? A ONG? Donde virá o dinheiro se, de si, a actividade não dá lucro?
No passado entrou aqui o "Estado
benfeitor", impondo mínimos de solidariedade entre os diversos agentes
económicos, disciplinando a partir de fora a lógica intrínseca do capitalismo
(socialização de certos serviços, atendimento especial às classes mais pobres,
etc). Mas, com os neoliberalismos de distintas cores, até o Estado se vergou ao
poder dos grandes interesses económicos. Parafraseando Rosa Luxemburgo,
diríamos que "ao galinheiro livre, voltou a liberdade da raposa livre
". É livre o comerciante tradicional de loja aberta ao lado da grande
superfície comercial? Lacordaire (1802-1861), o célebre dominicano, dizia que
"entre o rico e o pobre, entre o forte e o débil, a liberdade oprime e a
lei liberta". E é evidente que, numa sociedade sem leis, acaba por se
implantar a desigualdade. Por isso, alguns teóricos não têm pejo de afirmar que
"numa economia de mercado carece de sentido a ideia de justiça
social" (Hayek).
Por tudo isto é que a DSI não tem sido
meiga para com o capitalismo. Leão XIII começava a sua Rerum Novarum com uma severa crítica à degradada situação social da
época, cujas causas fundamentais, dizia, eram a "miséria imerecida" e
a "voraz usura" dos capitalistas que explorava as massas
trabalhadoras. Referia-se aqui o Papa, claramente, ao capitalismo liberal.
Falando do seu tempo, Pio XI foi mais
claro: em si, o capitalismo não é imoral, mas pode chegar a sê-lo pelos abusos
a que dá (deu) lugar a exploração do trabalho, a "ditadura económica"
(QA 109) que começa por pretender alcançar um simples "predomínio
económico mas logo almeja o político, primeiro a nível nacional, depois
internacional» (QA 108). O Papa de resto adianta uma definição de capitalismo:
"tipo de economia em que uns põem o capital e outros o trabalho" (QA
100) que "não é viciado por natureza. Ele viola a ordem recta apenas
quando o capital abusa dos trabalhadores e da classe proletária com a
finalidade de que os negócios e no fundo toda a economia decorram unicamente da
vontade e proveito particulares, sem ter em conta nem a dignidade humana dos
trabalhadores nem o carácter social da economia, nem sequer a própria justiça
social e o bem comum" (QA 101).
Referindo-se ao capitalismo, o Vaticano
II condenou o lucro como único motor da vida económica (GS 85) e algumas das
suas maiores aberrações (os trusts e os latifúndios improdutivos [GS 65]), bem
como o liberalismo económico: "O desenvolvimento não se deve abandonar ao
simples curso quase mecânico da actividade económica" (GS 65).
Paulo VI, na PP, condenou não todas as
formas de capitalismo mas sim o capitalismo liberal, para o qual o lucro é um
motor essencial, a competitividade
lei suprema, e a propriedade um
direito absoluto (PP 26). Voltaria a
fazê-lo na Octogesima Adveniens.
Mas seria João Paulo II, na Centesimus Annus, a afirmar, sem margem
para dúvidas, o que o capitalismo deve ter em linha de conta: que o princípio
do mercado livre tem de submeter-se ao poder legislativo; e que a actividade
económica tem de ter como valor primeiro o trabalho livre, devendo a empresa
ser organizada de modo participativo. Numa palavra, a prioridade está no Homem.
Ele tem de realizar-se por meio da inteligência e da liberdade; e para isso é
necessário se lhe reconheça o direito à iniciativa e à propriedade; a
propriedade dos meios de produção só é legítima se forem postos ao serviço do
trabalho útil. Finalmente, reafirma o seu apoio à democracia, reconhecendo ao
Estado um papel essencial na vida económica moderna.
Ou seja: se entre marxismo e
capitalismo não havia escolha possível mesmo antes da queda dos regimes de
Leste, hoje teremos de vergar-nos todos, indivíduos e cidadãos, ao capitalismo
globalizado?
6.3.
Economia social de mercado?
Na encíclica Centesimus Annus, João
Paulo II situava-se (1991) no "aqui e agora". Desaparecido o
colectivismo, apenas duas variantes do sistema capitalista passaram a disputar
o mundo: a economia social de mercado (capitalismo moderado) e o neoliberalismo
(capitalismo duro).
Este - o neoliberalismo -
"assegura a prevalência absoluta do capital, da posse dos meios de
produção e da terra, relativamente à livre subjectividade do trabalho do
homem" (CA 35.2); aquela - a economia social de mercado - "não se
contrapõe ao livre mercado, mas requer que ele seja oportunamente controlado
pelas forças sociais e estatais, de modo a garantir a satisfação das exigências
fundamentais de toda a sociedade" (id.).
Digamos que, entre estas duas
hipóteses, João Paulo II segue bastante na linha de pensamento do conhecido
economista americano Keynes, que defende como necessária a intervenção de um
árbitro, o Estado, no processo económico, uma vez que o capitalismo "não
se auto-regula nem é capaz de respeitar por si mesmo o bem comum". Esta
opção não impede o Papa de afirmar que é necessário, no entanto, continuar a
buscar novas soluções, e desde logo um "sistema justo" que elimine
"na sua raiz" a antinomia entre trabalho e capital (CA 42),
"tarefa que constitui um grande postulado ético da hora presente (M.
Vidal).
Ou seja, de que fala exactamente João
Paulo II?
Nos anos 30 do séc. passado, à
dicotomia marxismo / capitalismo, alguns regimes políticos (desde logo o
português então vigente) e o próprio Pio XI pensaram numa "terceira
via" que seria o corporativismo, modelo muito sonhado pelos chamados
"católicos sociais" do séc. XIX que, no fundo, apontavam no sentido
de uma organização social que enquadrasse empresários e assalariados numa mesma
organização corporativa, segundo o modelo das ditas medievais. A proposta foi
ainda retomada por Pio XII, mas João XXIII calou-a e Paulo VI acabou com a
questão afirmando que estava superada "uma certa preferência histórica
pelas formas corporativas e pelas associações mistas".
Seja como for, já nessa altura a DSI
andava na busca de uma solução alternativa. É o que agora, por outro lado, João
Paulo II tenta desenhar, escutando economistas e políticos de mérito.
Antes de mais afirmando que, na
concepção cristã, não é a propriedade privada mas o destino universal dos bens
o dado primeiro e irrenunciável de toda esta questão: a criação foi dada aos
homens todos e não só a alguns.
Quanto aos meios de produção, não
exclui a priori formas de propriedade colectiva, desde que esta não os
administre burocraticamente e permita aos trabalhadores serem
"co-proprietários" da empresa. Na opinião do Papa, não interessa
tanto saber da titularidade da propriedade, isto é, não interessa tanto saber de
quem ela é, mas a quem ela serve: "Os meios de produção … não
podem ser possuídos contra o trabalho como não podem ser possuídos para
possuir, porque o único título legítimo para a sua posse - e isto tanto sob a
forma de propriedade pública como colectiva - é que eles sirvam ao
trabalho" (LE 14). No entanto, a experiência mostrou que a melhor forma de
tornar realidade o destino universal dos bens é a apropriação privada dos
mesmos, tanto se trate de bens de consumo como de meios de produção. Por isso a
Igreja afirma uma certa preferência pela propriedade privada, afirmando que o
trabalho é o título mais nobre e indiscutível de acesso a ela.
Não se segue desta afirmação que se
possa canonizar sempre a distribuição da propriedade, tal como ela se concretiza
na prática. Ao proclamar o direito à propriedade privada a Igreja defende
também a direito que a ela têm todos. E a verdade é que se poucos têm (quase)
tudo, a muitos não lhes resta senão ter nada. Só um dado: as 225 pessoas mais
ricas do mundo têm uma riqueza combinada superior a um bilião de dólares, o
mesmo que a receita anual de dois biliões e meio de seres humanos, que
representam 47% da população mundial (PNUD 1998)! Por isso, diz o Papa, estas
grandes acumulações de capital devem submeter-se a "uma revisão
construtiva, na teoria e na prática" (LE 14).
A propriedade privada tem de estar
subordinada ao destino universal dos bens, porque lhe está inerente uma função
social. "Nem tudo é privado na propriedade privada" (Y. Calvez).
E a experiência mostrou que não é
suficiente apelar à consciência individual para que o exercício da propriedade
se mantenha dentro dos limites que lhe marca a sua função social; por isso é
necessária a intervenção dos poderes públicos (que pode chegar, inclusive, à
expropriação, se o Bem Público o exigir).
Por isso, se o Bem Comum deve ter
prioridade sobre o individual, "a finalidade fundamental da produção não é
o benefício [próprio], mas o serviço do homem, e do homem integral" (GS
64). A Igreja, "perita em humanidade", sabe que não é possível
prescindir por completo dos incentivos materiais na actividade económica. Não
pode por isso esquecer que "o homem leva dentro de si a ferida do pecado
original" e que "esta doutrina não só faz parte integrante da revelação
cristã, como tem também um enorme valor hermenêutico que ajuda a compreender a
realidade humana. O homem tende para o bem mas é igualmente capaz do mal"
(CA 25).
Por isso, a participação dos
trabalhadores na gestão das empresas é um direito derivado do "princípio
da prioridade do trabalho sobre o capital". Este princípio tem a ver
directamente com o próprio processo de produção: porque o trabalho é sempre uma
causa eficiente primária do processo económico, enquanto que o capital (ou o
conjunto dos meios de produção) é apenas um instrumento ou causa instrumental
(LE 12). E o que se passa normalmente é exactamente o contrário: puros
instrumentos de trabalho são os trabalhadores, que quando já não são precisos
ou não prestam - como instrumentos - mandam-se para o lixo e que se lixe!
Por tudo isto, os poderes públicos têm
uma responsabilidade específica na gestão da economia. Existe "um
princípio elementar de qualquer sã organização política que é o de que os
indivíduos, quanto mais indefesos são na sociedade, tanto mais necessitam da
atenção e do cuidado dos outros, e particularmente da intervenção da autoridade
pública" (CA 10).
Vejamos o que se está a passar com a
Clarks, em Castelo de Paiva e agora em Gaia. Injustiça? Clara! Ilegalidade?
Parece que não! É que o capital hoje não tem pátria, não é daqui nem dali, e
por isso vai para onde encontra melhores condições, países onde os
trabalhadores ganham menos. Que lhe interessa ao capital fazer 600
desempregados aqui, se ali produz o mesmo mais barato? E não fazem o mesmo
certos capitais portugueses instalados em Marrocos ou no Brasil? Quem com
ferros mata… E não deve o Estado olhar sobretudo pelos "mais indefesos na
sociedade" que, por isso mesmo, "tanto mais necessitam da atenção e
do cuidado dos outros, e particularmente da intervenção da autoridade
pública" (CA 10)?
O que fica dito sobre a economia social
de mercado (capitalismo moderado) constitui só por si uma alternativa capaz à
maneira como funcionam as sociedades modernas?, e falamos das nossas,
europeias, que, mais ou menos todas iguais, são as que vivemos, ou falta-nos
ainda muito para se tornar verdade a "liberdade, igualdade e
fraternidade" com que nossos avós já sonhavam? Para não falarmos já no
capítulo 25 de Mateus. Mas isso é outra história, que a caridade é tão só
"a perfeição da justiça" (Sínodo dos Bispos 1971).
7. O
mundo da pobreza
Bem-aventurados os pobres, mas dai de
comer a quem tem fome! Cuidado entretanto, que nem só de pão vive o homem.
Muitas vezes já aqui falámos da pobreza no mundo. Vamos ler Steinbeck (As Vinhas da ira):
As raízes das vinhas e das árvores
devem ser destruídas, para que os preços sejam mantidos em alta. É isto o mais
triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O
pessoal vinha de milhas de distâncias para buscá-las, mas agora não lhes é
permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte cêntimos a dúzia, quando
bastava sair do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de mangueiras,
regaram-nas com querosene e enfurecem-se agora contra o crime daquela gente que
veio à procura de fruta. Um milhão da criaturas com fome, de gente que
necessita de fruta… e o querosene derramado sobre montanhas douradas!
O cheiro de podridão enche o país.
Queimam café com combustível de navios.
Queimam milho para o aquecimento: o milho dá um lume excelente! Atiram batatas
para os rios, mas colocam guardas ao longo das margens, para evitar que o povo
faminto tente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a podridão
penetrar na terra.
Há nisto tudo um crime, um crime que
ultrapassa o entendimento humano. Há nisto uma tristeza que o pranto não pode
simbolizar. Há um malogro que põe barreiras a todos os nossos êxitos; à terra
fértil, às filas intermináveis de fruteiras, de troncos vigorosos carregados de
fruta madura! Crianças atingidas pela pelagra têm de morrer porque a laranja
não pode deixar de proporcionar lucro. Os médicos legistas devem depois
declarar nas certidões de óbito: "Morte por inanição", porque a
comida deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as
batatas dos rios, e os guardas impedem-no. Os homens vêm em carros ruidosos
apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão regadas de querosene.
E ficam imóveis a ver as batatas a passar flutuando; ouvem os grunhidos dos
porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam montanhas de
laranjas a rolar num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflecte-se o
malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da
ira crescem e espraiam-se pesadamente, amadurecendo para a vindima.
Tantas vezes falámos já aqui de
injustiça e de pobreza! Muitos dizem que a fome é o "grande escândalo do
século XX". Sim, sim, maior que o das guerras mundiais, e maior que o do
pauperismo do séc. XIX gerado pela revolução industrial. E os teólogos não
ficam atrás e dizem-na uma "questão teologal", que tem a ver não só
com o homem - a negação do Homem - mas também com Deus - negação prática de
Deus - e que exige do cristianismo (qualquer que ele seja) uma clara afirmação
de fé em Deus: ou será que não somos irmãos e Deus deixou de ser Pai de todos?
Tudo isto é muito bonito, só que a
injustiça e a pobreza têm rostos. Porque a injustiça concretiza-se nas
perversas manifestações de desigualdade, pobreza, desprezo, marginalização e
exclusão de numerosas pessoas e mesmo de povos que se podem considerar
"crucificados" (Ellacuría). Manifestações realmente perversas porque
geram sofrimento e chegam inclusive a provocar a morte antecipada e indevida de
não poucos.
As desigualdades provocadas pela
injustiça percebem-se a olho nu. Porquê uns e não outros? Porque têm direito
uns e outros não? A nível sócio-económico, as desigualdades traduzem-se
fundamentalmente na injusta existência de ricos e pobres, de incluídos e de excluídos
no sistema. A nível jurídico-político, a desigualdade exprime-se, por exemplo,
em ter-se ou não possibilidade de decisão na configuração da sociedade, isto é,
em ter ou não ter poder. Ou, dito duma maneira mais crua: no facto de haver
dominadores e dominados, cidadãos que gozam dos seus direitos e súbditos que
não têm possibilidade de exercê-los. A nível ideológico-cultural, haveria que
falar nas desigualdades intoleráveis entre etnias e raças, entre culturas e
sexos, entre credos religiosos…
Normalmente, os que sofrem os efeitos
da desigualdade, qualquer que ela seja, são potenciais candidatos a padecer
também de outros males. Os que são economicamente pobres podem ser também - e
são-no muitas vezes - marginalizados e excluídos sociais, pertencem na sua
maioria ao sexo feminino e à terceira idade, carecem de poder e de cultura, não
participam activamente na estruturação da sociedade e, frequentemente, são de
raças, etnias, culturas e mesmo religiões desprezadas.
Para se perceber a grande complexidade
e alcance de tudo isto, é preciso não esquecer que esta injustiça, com a sua
sequela de desigualdades, está na origem de fenómenos tão indesejáveis como a
emigração compulsiva, a xenofobia, o descalabro ecológico, o desemprego
estrutural, a discriminação da mulher, o etnocentrismo, o racismo, a
colonização ou imposição cultural, o fundamentalismo religioso e até a guerra.
Não sei se tem muito interesse voltar
aos números.
As desigualdades do consumo são
brutais. À escala mundial, 20% dos habitantes dos países mais ricos fazem 86%
do total dos gastos em consumo privado planetário, e os 20% mais pobres gastam
apenas um minúsculo 1,3%.
As três pessoas mas ricas do mundo têm
activos que superam o Produto Interno Bruto combinado dos 48 países mais pobres
do planeta.
As 15 pessoas mais ricas do mundo
superam o PIB de todos os países africanos ao sul do Sará.
A riqueza das 32 pessoas mais ricas do
Mundo supera o PIB total de Ásia meridional.
Os activos das 84 pessoas mais ricas do
mundo superam o PIB da China, que é o país com mais população em todo o mundo,
uns 1.200 milhões de habitantes.
Os 255 habitantes mais ricos do mundo
têm uma riqueza combinada superior a um bilião de dólares, o mesmo que o
rendimento anual de 47% da população mundial (2.500 milhões).
As diferenças de rendimentos entre a
população dos países mais ricos e a dos países mais pobres continua a aumentar.
Em 1960, 20% da população mundial dos países mais ricos tinha 30 vezes mais que
os 20% mais pobres: em 1997 esta proporção tinha aumentado para 74 vezes.
Chega de números. São do Relatório
sobre o Desenvolvimento Humano, da ONU, de 1997, 1998 e 1999.
De facto, que se passa no nosso Mundo?
7.1. Uma
autoridade Mundial velando pelo Bem Comum
Quando em 1891 Leão XIII escreveu a RN
a questão social limitava-se às relações entre patrões e operários. É Pio XII
que, em 1958, começa a falar de solidariedade com os países pobres. João XXIII
referir-se-ia já à questão social em dimensões planetárias e Paulo VI falaria
do Populorum Progressio (Desenvolvimento
dos Povos).
A economia internacionalizava-se.
Sobretudo a partir de 1973 - a crise do petróleo - só os grandes países
(Estados Unidos, Índia, China…), contando com os seus enormes mercados
internos, tinham possibilidade de pensar uma política macroeconómica
relativamente independente. Mas, numa economia globalizada, há uma grande
diferença relativamente à antiga economia que se pensava num estado e só para
ele: é que, enquanto no interior de um país se podem criar mecanismos de
regulação e de redistribuição, a nível mundial não há nenhuma autoridade
reconhecida neste campo. Portanto, lei da selva. Banco Mundial, FMI,
Organizações regionais ou outras, tudo olha pelos seus interesses e nada mais.
É assim nos nossos dias.
É neste exacto campo que a DSI começa a
clamar por uma autoridade mundial. Paulo VI dizia em 1963, na ONU, que é
necessário "chegar progressivamente ao estabelecimento duma autoridade
mundial em condições de agir eficazmente no plano jurídico e político".
Porque a internacionalização da economia
(hoje diz-se globalização) exige se releiam em chave planetária os princípios
da moral económica que a igreja
elaborou ao longo da sua história. E há três coisas fundamentais.
Primeira. A afirmação do destino
universal dos bens:
"Deus destinou a terra com tudo o
que ela contém para uso de todos os homens e povos. Por isso, os bens criados
devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça secundada pela
caridade. (…) Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o Concílio
insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela
palavra dos Padres - "alimenta o que padece fome, porque, se o não
alimentares, mata-lo" - repartam realmente e distribuam os seus bens,
procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes
permitam ajudar-se e desenvolver-se a si próprios" (GS 69).
E, continuando a reler em plano mundial
o que até então se dizia apenas em plano local ou até nacional, o Concílio
recorda o velho princípio da moral cristã e popular - "roubar para comer
não é pecado": "Quem se encontrar em extrema necessidade tem direito
a tomar, dos bens dos outros, o que necessita" (GS 69).
Segunda afirmação. A dívida que mata.
Um jornalista do Le Monde escrevia há
pouco tempo (2003.02.17) que as taxas de juros aplicadas pelo FMI a muitos
países do Terceiro Mundo - falava do Brasil - eram tais que, exigidas em
França, levariam à prisão por crime de usura! Por isso, já S. Tomás de Aquino
(séc. XIII) aplicava o princípio "roubar para comer não é pecado" ao
caso do devedor que não pudesse pagar o que devia sem cair em extrema miséria.
E João Paulo II:
"Com certeza que é justo o princípio de
que as dívidas devem ser pagas; não é lícito, porém, pedir ou pretender um
pagamento quando ele levaria de facto a impor opções políticas tais que
condenariam à fome e ao desespero populações inteiras. Não se pode pretender
que as dívidas contraídas sejam pagas com sacrifícios insuportáveis. Nestes
casos, é necessário - como, de resto, está sucedendo em certa medida -
encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida,
compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao
progresso" (CA 35).
Finalmente. João XXIII definiu o Bem
Comum como "o conjunto de condições sociais que permitem e favorecem ao
homem o desenvolvimento integral da personalidade" (MM 65). Pio XII tinha
já apontado a esta mesma noção um âmbito mais universal:
"Aquelas condições externas que
são necessárias ao conjunto dos cidadãos para o desenvolvimento das suas qualidades
e dos seus ofícios, da sua vida material, intelectual e religiosa". O bem
comum não pode ser, portanto, entendido, apenas numa acepção individualista.
Assim como, no interior de um país, o bem comum prevalece sobre o individual,
também na economia mundial o bem comum universal tem de prevalecer sobre o
nacional: "Assim como nas relações privadas não é lícito a ninguém
conseguir os seus próprios interesses danificando injustamente os outros,
também nas relações entre as comunidades políticas não pode, sem crime, nenhuma
delas desenvolver-se lesando ou oprimindo as restantes. É aqui oportuno citar a
expressão de Santo Agostinho: 'Se se abandonar a justiça, a que ficarão
reduzidos os reinos senão a grandes latrocínios?'" (PT 92).
Churchill dizia que "as nações não
têm amigos, têm interesses" (na maior parte das línguas europeias, esta
palavra interesse quer dizer também juros!).
Será que pode nesta questão entrar um
bocadinho de espírito evangélico?
"A exploração do homem, a
indiferença pelo sofrimento alheio, a violação das normas morais são somente
alguns dos resultados da ambição do lucro. Frente ao triste espectáculo da
persistente pobreza que atinge boa parte da população mundial, como não
reconhecer que o lucro perseguido a todo o custo e a falta de atenção efectiva
e responsável pelo bem comum concentram uma grande quantidade de recursos nas
mãos de poucos, enquanto o resto da humanidade sofre na miséria e no abandono?
Fazendo apelo aos crentes e a todos os homens de boa vontade, desejo reafirmar um
princípio óbvio por si mesmo, apesar de não raro desatendido: é necessário
procurar não o bem de um restrito círculo de privilegiados, mas a melhoria das
condições da vida de todos. Somente sobre este fundamento se poderá construir
aquela ordem internacional orientada realmente para a justiça e na
solidariedade, que todos almejam" (João Paulo II, Mensagem quaresmal
2003).
7.2. O
mundo da pobreza, uma estrutura de pecado
"As nações não têm amigos, têm
interesses", dizia Churchill (recordo que, na maior parte das línguas
europeias, esta palavra interesse quer dizer também juros!).
Apesar disto, estou em crer que há boas
vontades no sentido de que o actual estado de coisas se possa alterar. Mas
muitos, e às tantas eu também, estamos mesmo convencidos que a tarefa é
praticamente impossível. É que - dizia João Paulo II - "há mecanismos
económicos, financeiros e sociais que, embora conduzidos pela vontade dos
homens, funcionam muitas vezes de maneira quase automática, tornando mais
rígidas as situações de riqueza de uns e de pobreza de outros. Estes
mecanismos, manobrados - directa ou indirectamente - pelos países mais
desenvolvidos, favorecem com o seu próprio funcionamento os interesses de quem
os manobra, mas acabam por sufocar ou condicionar as economias dos países menos
desenvolvidos" (SRS 16).
A estes "mecanismos económicos,
financeiros e sociais" chama depois o Papa "estruturas de
pecado". O que quer isto dizer?
É verdade que de há muito a moral
cristã sofria de um individualismo exagerado. Até parece que a única coisa
importante na vida era a conduta pessoal: bom pai, bom marido, bom
profissional, pagar os impostos e ir à missa ao domingo. Se depois disto tudo
ainda havia mal no mundo já não era da nossa responsabilidade. Aqui radica a
certeza que muitos têm de que o mal é sempre culpa dos outros.
Rompendo com esta perspectiva, os
teólogos começaram a falar de pecado social, situação de pecado, estruturas de
pecado, dimensão estrutural de pecado, etc, mas de início apenas a medo, não
fosse a responsabilidade individual fazer das estruturas um bode expiatório,
como se houvesse "pecados sem pecador".
Nada disso. As estruturas de pecado são
fruto da acumulação de pecados pessoais e, portanto, o mal que delas deriva é
da responsabilidade de quem as originou e as mantém. Mas é verdade que, quando
os pecados pessoais cristalizam numa "estrutura de pecado", trata-se
então de algo qualitativamente distinto de uma simples soma de pecados
individuais. De facto, as estruturas de pecado manifestam um "novo poder
" distinto do dos pecados individuais. Por isso é que encontramos no mundo
um mal maior e qualitativamente diferente do que deveria resultar da soma das
vontades individuais. Há efectivamente, apesar de tudo, poucos monstros humanos
tipo Hitler ou Estaline, Dutrout ou o Estripador de Londres. E no entanto a
fome no mundo, a estrada, o assassínio directo, eu sei lá que mais, mata, ainda
hoje, mais, muito mais, mesmo que qualquer das guerras mundiais do século
passado.
Permitam-me um exemplo: podia dá-lo com
o nosso Pe. António Vieira mas, como é conhecido de alguns, vou a outro.
No 4º Domingo do Advento de 1511, frei
Antonio de Montesinos surpreendeu os cristãos de La Hispaniola (hoje República
Dominicana) com este sermão:
«Todos vós estais em pecado mortal. Nele
viveis e morreis por causa da crueldade e tirania com que tratais estas gentes
inocentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e
horrível escravatura estes índios? Com que autoridade levais a cabo cruéis
guerras contra os povos que aqui viviam, mansos e pacíficos, gente que destruís
com mortes e sofrimentos nunca pensados? Como os tendes tão oprimidos e
fatigados, sem lhes dardes de comer nem os tratardes das suas doenças,
submetendo-os pelo contrário a trabalhos forçados que os matam? Ou melhor,
matá-los matai-los vós obrigando-os a trabalhar dia a dia na busca do ouro com
que vos encheis. Que cuidado tendes em que alguém os ensine, lhes fale de Deus
criador? Não são eles homens? Não têm alma? Não sois obrigados a amá-los como a
vós mesmos? Não entendeis isto?».
Comentando este sermão, Fr. Bartolomeu
de Las Casas escreveu assim na sua História
das Índias: "Deixou-os atónitos, a muitos em estado de choque, a
outros mais empedernidos ainda, mas, ao que depois percebi, não converteu um
sequer!".
Pior do que isso: como quando António
Vieira chamou a uns "peixes grandes que comem os pequenos" e a outros
"peixes pequenos comidos pelos grandes" e ninguém era "peixe
grande" em S. Luís do Maranhão naquele ano de 1654, em La Hispaniola, quase
150 anos antes, a culpa não era também de ninguém.
Eu vou dizer isto de uma maneira
politicamente incorrectíssima. Se, segundo o PNUD 2000, a esperança média de
vida é em Portugal de 75,5 anos e a da Guiné-Bissau de apenas 44,9, porque é
que a gente não desata a matar, neste país que é o nosso, indiscriminadamente,
todas as pessoas que têm mais de 44,9 anos! Mas não é isso que, na prática, se
faz na Guiné-Bissau? Porque é que entre o Primeiro e o Terceiro Mundos podem
continuar a existir tais estruturas de pecado que, ao acumularem-se num dos
lados os recursos alimentares e sanitários, se faz com que nós possamos viver
em Portugal e em média mais de 30 anos que os guineenses?
A aceitação do conceito de
"estruturas de pecado" deu realismo à DSI, tradicionalmente acusada
de se fechar num moralismo ingénuo que punha o acento na boa vontade dos
indivíduos mas ignorava as estruturas em que eles se movem sem grande margem de
manobra. Claro que conversão pessoal, mas também mudança de estruturas: "A
originalidade da mensagem cristã não consiste apenas na afirmação da
necessidade da mudança de estruturas mas também na importância da conversão do
homem. Esta exigirá aquela. Não teremos um mundo novo sem estruturas novas e
renovadas; mas sobretudo, não haverá um mundo novo sem homens novos que, à luz
do Evangelho, saibam ser livres e responsáveis" (Medellín, 1968).
7.3. As
vítimas da pobreza clamam pela justiça de Deus
Foi o teólogo luterano alemão
Bonhoeffer (1906-1945), morto num campo de concentração nazi, quem primeiro
falou de um "status confessionis", isto é, daquela situação limite
que era a do nazismo em que se exigia dos cristãos uma clara e explícita
Profissão de Fé teologal, e não apenas humanitária ou política. Alguns teólogos
contemporâneos falam doutras situações desse calibre a exigir uma outra
Profissão de Fé, a da pobreza no mundo ou a própria decisão da guerra.
De facto, a injustiça actualmente
existente no mundo, com todas as suas manifestações de desigualdade, pobreza,
marginalização e exclusão, isto é, com todo o tipo de sofrimento que gera e que
destrói tanta gente com uma "morte prematura", é hoje em dia o maior
problema ético da humanidade.
Considerado à luz da fé cristã, o
problema da injustiça não se situa apenas no campo da ética mas adquire um
estatuto rigorosamente teologal: "o que mais oculta o rosto de Deus é a
profunda injustiça que reina no mundo. Se não lutarmos contra ela e não nos
pusermos ao lado das vítimas, colaboramos com o actual ocultamento de
Deus" (Bispos vascos, 1998). De facto, só por si, a própria injustiça -
bem como a falta de solidariedade que a perpetua, a mentira que a encobre e a
ideologia que a justifica - oculta o rosto do Deus de Jesus e constitui mesmo
uma negação radical de Deus. Num mundo dominado pela injustiça que gera tantas
vítimas, como se pode conhecer e encontrar Deus, "Pai e Mãe", amor
misericordioso e libertador, Deus da vida, que oferece de preferência aos
pobres um Reino de justiça e de paz, como nos revelou Jesus? A "morte de
Deus" está, para muitos, estreitamente ligada à realidade da injustiça.
A situação histórica de dependência e
dominação de dois terços da humanidade, com os seus 30 milhões anuais de mortos
pela fome e desnutrição, constitui uma acusação grave a toda a humanidade, mas
também aos cristãos: "Onde está o teu irmão, Abel" (Gn 4,9);
"Tive fome e não me deste de comer" (Mt 25, 42).
E quando os cristãos pretendemos viver
a fé sem nos deixarmos desafiar pelo sofrimento das vítimas da injustiça, é o
próprio Deus, Pai e Mãe, que pomos em questão e, com ele, o próprio Jesus
histórico e a sua Igreja. O cristianismo deixa de ter sentido.
Se o que acabo de dizer é verdade (e só
deixa de o ser se o cristianismo for apenas um moralismo individualista,
barato, calculista e de trazer por casa), então afirmar Deus no tempo presente
tem de ser um compromisso com a humanização e uma garantia da plenitude da vida
das maiorias pobres e oprimidas da humanidade. Isso sim, dará credibilidade a
um Deus-Pai-e-Mãe, e viabilizará o melhor resumo da vida e da pregação de Jesus
- o Reino de Deus. Bem como dará credibilidade à própria Igreja: porque
"reconhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros"
(Jo 13,35).
O repto que a injustiça lança hoje à
Igreja, a qualquer dimensão e em qualquer lugar, é hoje um desafio teologal. É
um repto tão decisivo e importante que se torna absolutamente radical: ou a fé
no Deus verdadeiro que é fonte de vida, ou a adesão aos falsos ídolos que
chafurdam na carniça da injustiça, do sofrimento e da morte. Uma vítima não tem
hoje qualquer interesse em saber se um ser humano é crente ou não;
interessa-lhe sim saber em que Deus acredita e que ídolos combate. Ninguém se
escandalize com isto, que já o dizia Jesus na parábola do Juízo final:
"tive fome e não me deste de comer". Por isso, "para dizer toda
a verdade, é preciso dizer duas coisas: em que Deus se crê e em que ídolos se
não crê. Sem esta formulação dialéctica, a fé é uma teoria, vazia de sentido e,
o que é pior, ela pode tornar-se muito perigosa porque permite que coexistam
crença e idolatria" (J. Sobrino). Ou não consistiu sempre a idolatria em
estabelecer uma corte trágico entre a afirmação teórica de Deus e a prática da
injustiça?
O repto da injustiça exige, portanto,
concretização e clarificação. Obriga a afirmar em que Deus se acredita e quais
são os ídolos a combater. Na resposta que lhe dermos podemos encontrar uma dos
mais decisivos critérios da verdade da nossa fé no Deus de Jesus. De facto,
nesta perspectiva, a "questão da injustiça" é "a questão de
Deus".
"Onde
estás?, eu te busco, meu Deus, / cada dia e cada noite. /… / Estás no olhar e
na mão do mendigo / que vive sem alento / … / Estás na palavra que espera /
chegue a justiça".
7.4.
Dizer 'Deus' é escutar o clamor dos pobres
O repto que a injustiça e a guerra
lançam à Igreja, a qualquer dimensão e em qualquer lugar, constituem hoje um
desafio teologal. O repto da injustiça e da guerra exige a profissão de fé no
Deus em que acredita e a renúncia dos ídolos a abater. Dizia há oito dias.
E acrescentava: é teologal a questão
que nos ocupa. Isto é: contribuir para a injustiça ou até só resignar-se diante
dela é na prática negar radical e praticamente o Deus cristão; pela contrário,
lutar pela justiça defendendo o direitos dos indefesos é crer em Deus e professar
essa fé, é sacramentalizar a sua presença na história.
"A teologia cristã … encontra-se
hoje diante da tarefa de tornar de novo audível o grito de sofrimento e o
clamor pela justiça que se eleva de uma grande parte da humanidade. Fazer
teologia, dizer 'Deus', sem escutar esse clamor é não conhecer aquele que se
revelou escutando o clamor do seu povo (Ex 3,7), o mesmo povo ao qual Jesus, o
Cristo, anunciou a sua própria vinda lembrando que os cegos viam, os coxos
andavam e aos pobres era anunciada uma "boa notícia" (Lc 4,18; Mt
11,4). A teologia tem que assumir que a situação de injustiça no mundo, bem
como o consequente sofrimento dos pobres e a sua aspiração pela justiça, não é
apenas resultado da situação económica do mundo nem se reduz a um elemento da
sua situação moral, antes tem directamente a ver com a sua situação religiosa,
tem decisivamente a ver com Deus e com a relação efectiva dos crentes com
ele" (Martín Velasco). O Deus bíblico é, desde o Êxodo, o que escuta o
clamor do povo injustamente oprimido; a escuta desse clamor faz parte da
identidade do Deus de Israel.
Por isso, necessariamente, o Deus que
se nos revelou na mensagem e na totalidade da vida de Jesus mantém esta mesma
vinculação essencial com a realização da justiça, radicalizada e aprofundada
entretanto no amor. O centro da mensagem de Jesus foi a proclamação da chegada
do Reino de Deus como boa notícia de salvação para os pobres e pecadores.
Quando Jesus anunciou a chegada deste Reino, estava a proclamar a
bem-aventurança para os pobres, a libertação para os cativos, a vista para os
cegos, a voz para os mudos, o andar para os coxos, a liberdade para os
oprimidos, a integração dos excluídos. Pode mesmo dizer-se que o que
especificou o anúncio de Jesus foi o convite dirigido a todos os marginalizados
e excluídos a que se sentassem nos primeiros lugares do banquete do Reino.
Porque a causa de Jesus, Filho de Deus, era a causa da justiça. E "O mesmo
Deus que, na plenitude dos tempos, enviou Jesus feito homem, vem hoje libertar
todos os homens de todas as escravidões a que os sujeita o pecado, a
ignorância, a fome, a miséria e a opressão, numa palavra, a injustiça e o ódio
que têm a sua origem no egoísmo humano" - dizia Medellín em 1968.
Por isso, ainda, a fé cristã pode e
deve contribuir de forma significativa para despertar a humanidade deste
"sonho mau" de desumanidade que nos cobre. Precisamos manter-nos
fiéis à memória subversiva da morte e ressurreição de Jesus, isto é, pecisamos
ser capazes de não nos esquecermos da memória das vítimas de todos os tempos
mas num horizonte de esperança. É preciso subverter o presente (memória
subversiva) e projectar um futuro novo (memória esperançosa). A "memória
de Jesus" não é uma recordação que nos resguarda dos riscos do futuro.
Pelo contrário, ela activa exactamente a memória de todas as vítimas da
injustiça de todos os tempos da história, exercendo uma função crítica no seio
da nossa própria sociedade, na qual a lógica política e económica é sustentada
pelo poder dos mais fortes. Frente à incapacidade que esta lógica tem de
corrigir a injustiça do sistema e de tomar a seu cargo os débeis que tornou
fracos e os excluídos que excluiu, a fé cristã, fiel à memória de um
inconformista crucificado,
1. não esquece essa parte obscura e
inquietante da realidade social e comunga com ela, com a sua dor e o seu
fracasso, bem como com as suas justas aspirações;
2. questiona de forma radical o
triunfalismo e o bem estar dos mais fortes com todas as suas justificações
ideológicas;
3. fiel à memória de Jesus, crucificado,
morto e ressuscitado, pretende impedir que se repita a história do sofrimento
injusto das vítimas.
A esperança cristã, fundamentada na
memória crente de Jesus ressuscitado, remete o cristão para o ser humano, para
o mundo e para a história, exactamente aqui onde nascerão "um novo céu e
uma nova terra" (Apo 21,1), onde "se enxugarão todas as lágrimas dos
olhos dos humanos e não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem fadigas,
porque o velho mundo passou" (Apo 21,4) e onde o próprio Deus será
"tudo em todas as coisas" (Col 3,11). É o que diz Paulo quando
escreve: "Meus queridos irmãos: mantende-vos firmes e inabaláveis;
trabalhai sem descanso na obra do Senhor, sabendo que ele não deixará a vossa
fadiga sem recompensa" (1 Cor 15,58).
8. A ecologia
«Ao fundo, via-se uma fileira de
chaminés de fábricas que expeliam enxofre e todo o tipo de venenos. Em primeiro
plano, num belo bosque, um rapaz e uma moça beijavam-se. Um padre que passava,
incomodado pelo fumo das fábricas, tossiu, espirrou a seguir, e, quando viu o
par, atirou-lhes: "Porcos!". Este é o quadro mais adequado para
referir a moral tradicional entre os anos 1900 e 1955»! Quem o diz é o
insuspeito Schillebeeckx numa das suas últimas obras Os Homens, relato de Deus.
A ecologia é, de facto, um problema
moral novo.
A palavra quer dizer, etimologicamente,
"tratado da casa". Como sabemos todos, enquanto o animal se adapta ao
ambiente em que vive, o homem modifica-o, adaptando-o a ele. O mal é que nem
sempre as intervenções do homem foram acertadas. Civilizações houve que, os
historiadores não têm hoje dúvidas, desapareceram em consequência do atropelo
ecológico que provocaram; outras, mais respeitadoras do ambiente, a egípcia ou
a chinesa, duraram por isso mais tempo. Hoje em dia, porque o homem tem mais
capacidade de modificar a natureza, mais perturbações lhe causa. E mais longe
chegam essas perturbações. Chernobil sentiu-se em França, por exemplo.
O sinal de alarme tocou praticamente
pela primeira vez há uns 40 anos quando se descobriu que estavam a crescer
exponencialmente três coisas: a população do planeta, o consumo de matérias
primas e a contaminação da natureza. O célebre Club de Roma (Os limites do crescimento, 1972)
formulou então: "Um crescimento indefinido, seja de que tipo for, não pode
sustentar-se com recursos finitos. Esta é a razão fundamental da doutrina
ecológica. E se é impossível fazer frente a um crescimento indefinido, pior
ainda se se tratar de um crescimento não já apenas indefinido mas, ainda por
cima, exponencial". Qual seja a diferença entre crescimento indefinido e
exponencial, deixo isso à matemática; fiquemo-nos com que crescer assim, quando
tal acaba o petróleo, acaba a água, acabam as plantas, depois não há madeira,
acaba a possibilidade de controlar a natureza, de sustentar o clima…
Dizia que até há bem pouco não havia
consciência de que era necessário respeitar a natureza, E ainda não há. Neste
pouco tempo, entretanto, muitas hipóteses surgiram no sentido de se reparar o
mal: regresso à natureza-virgem; regeneração na natureza (paga por quem; pelo
poluidor ou pelo consumidor?); cultura da frugalidade em vez da cultura do
desperdício; crescimento zero (mesmo para os que vivem ainda na Idade Média?),
etc.
Hoje vai-se chegando, mais ou menos, ao
fundo da questão: as raízes da crise ecológica são de ordem cultural e têm a
ver com o sentido que o homem da civilização industrial tem da sua relação com
a natureza e com os demais homens, bem como com o que ele entende por
felicidade. De facto, o homem moderno não se vê já como parte da natureza mas
antes como alguém que tem capacidade para a dominar e conquistar: a doença que
o leva a este modo de se relacionar com a natureza é a mesma que o leva a
oprimir, em benefício próprio, outros homens, outras classes e outros povos.
O cristianismo tem sido amplamente
acusado de estar na origem desta doença: "a religião cristã é a mais
antropocêntrica que o mundo alguma vez conheceu, especialmente na sua forma
ocidental". De resto, ela fundamenta-se na judaica, do "dominai a
terra" do Génesis (1,28). Por isso, "Posto que as raízes do nosso
problema são religiosas, o remédio deve ser também essencialmente religioso,
chame-se assim ou não. Mais ciência e mais tecnologia não nos libertarão da
actual crise ecológica, a não ser quando se encontrar uma nova religião ou
reconsiderar a antiga". Quem assim fala é Lynn White, o homem que, antes
de mais ninguém, nos passados anos 60, acusou o cristianismo de ser o maior
responsável pela crise ecológica actual.
Ora bem. Dominar a terra não é a mesma
coisa que usar e abusar dela, como podiam pensar os antigos romanos (no Direito
Romano, dominar uma coisa era poder usar e abusar dela). Ainda bem que temos
dois relatos da Criação. É verdade que um, o mais recente, o do capítulo
primeiro, diz, nas traduções modernas, "dominai a terra", à letra, no
entanto, o que lá está é "ponde-lhe o pé em cima" no sentido daquilo
que a gente fazia quando éramos putos, durante o recreio, na escola, o vento
levava a vitória, corríamos uns poucos, o mais lesto punha-lhe o pé em cima e
dizia "é minha!". Portanto, "dominai a terra" no sentido de
"tomai posse dela".
Mas como temos duas versões, a mais
antiga, a do 2 e 3º capítulos, diz que Deus colocou o homem no "jardim do
Éden para o cultivar e também para o guardar" (Gn 2,15), não para o
dominar no sentido de abusar. E o Livro da Sabedoria acrescenta mais qualquer
coisa: "Deus de meus pais, Senhor de misericórdia que fizeste o universo
com a tua palavra e formaste o homem sabiamente para que domine sobre todas as criaturas
e governe o mundo com justiça e santidade…" (Sab 1,1-3). Diz o comentador
assim: o homem, que é à imagem e semelhança de Deus, tem de ter para com as
criaturas que lhe foram entregues, um relacionamento do mesmo tipo que
caracteriza o de Deus com o mesmo homem, feito de santidade e de justiça.
Já São Paulo reconhecia que "per
visibilia ad invisibilia" (pelas coisas visíveis se chega às invisíveis):
"o que em Deus é invisível torna-se, desde a criação do mundo, visível à
inteligência humana nas suas obras" (Rom 1,20). A natureza é assim - não
tenhamos medo da linguagem - um verdadeiro sacramento de Deus. Por isso,
"dai graças ao Senhor porque só ele fez maravilhas" (Salmo 136),
porque "os céus cantam a glória de Deus" (Salmo 19).
Mas de facto não é assim que o homem se
tem relacionado com a natureza. Apesar de S. Francisco de Assis e de alguns
outros!
Em resumo muito resumido sobre esta
questão, termino com João Paulo II:
"O carácter moral do
desenvolvimento não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a
natureza visível, a que os Gregos chamavam o cosmos. Também estas realidades exigem respeito, em virtude de três
considerações sobre as quais convém reflectir atentamente. A primeira refere-se
às vantagens de tomar ainda maior consciência de que não pode fazer-se
impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados -
animais, plantas e elementos naturais - como bem lhe parecer, em função das
próprias exigências económicas, (…) A segunda consideração funda-se, por sua
vez, na convicção, cada vez maior, da limitação dos recursos naturais, alguns
dos quais não são renováveis. (…) A terceira relaciona-se directamente com as
consequências que tem um certo tipo de desenvolvimento, quanto à qualidade da
vida nas zonas industrializadas. Todos sabemos que, como resultado directo ou
indirecto da industrialização, se dá, cada vez com maior frequência, a
contaminação do ambiente, com graves consequências para a saúde da
população" (SRS 34).
Não basta, pois, a solidariedade com os
mais pobres ou com os vizinhos. "No seio da crise ecológica, está a
incubar a convicção de que há exigências universais de ordem ética que têm de
ser respeitadas. Uma moral ecológica é uma moral da solidariedade da espécie:
os bens da terra são propriedade comum de todos os seus habitantes. Como são
limitados e cada vez mais escassos, há que administrá-los com critérios de
justiça não só sincrónica (entre os contemporâneos da mesma geração) mas também
diacrónica (entre a geração presente e as futuras). Por outra palavras, volta a
tomar-se em consideração a ideia de que "a espécie humana joga o seu
destino no âmbito subjectivo da interioridade, da liberdade responsável, e não
na crua objectividade técnico-científica" (Ruiz de la Peña).
9. A
política, a moral, o direito e a fé
Não há dúvida que, regra geral, os
políticos têm fraca fama. "Todos os senadores, depois de haverem
manifestado a sua opinião e de a terem defendido no parlamento da nação,
deveriam ser obrigados a votar exactamente ao contrário pois que, fazendo assim,
o resultado seria, sem dúvida, o favorável ao bem-estar público". A
afirmação é de 1726, e foi feita por Jonathan Swift, o autor das célebres Viagens de Gulliver.
E isto sem falarmos já nos problemas de
corrupção, pois é verdade que "por toda a parte cobrem o manto da política
interesses egoístas e bastardos, apostasias e vilezas" (Pardo Bazan). Mas
de facto uma coisa é a patologia da política, outra que "a dedicação à
vida política deve ser reconhecida como uma das mais altas possibilidades morais
e profissionais do homem" (Bispos espanhóis, 1983).
A palavra política refere "a arte
de governar a cidade" (pólis, em grego), ou seja, de harmonizar os
interesses dos diferentes grupos existentes na sociedade. O que não é fácil.
Veja-se lá por casa. E são muito menos.
A principal dificuldade que se coloca à
consecução de uma boa política radica no facto de que, para a conseguir, não
basta fazer uma simples soma aritmética das reivindicações das diversas
associações ou grupos particulares, já que elas são muitas vezes incompatíveis
entre si. É por isso necessário integrá-las numa síntese coerente que resulte
viável. Para consegui-lo, o poder político tem de dispor de uma alguma
capacidade de coacção, o que não quer dizer que para tal possa ou deva usar a
força física. Só na medida em que numa sociedade a força for substituída pelo
Direito, o medo pelo respeito, a coacção pelo consentimento e a necessidade
pela liberdade, o Estado alcança os seus objectivos. O Vaticano II explicou
assim:
"A comunidade política existe em
vista do bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e
dele deriva o seu direito natural e próprio. (…) Assim, para impedir que a
comunidade política se desagregue seguindo cada um o seu próprio parecer,
requere-se uma autoridade que faça convergir para o bem comum as energias de
todos os cidadãos, não de uma maneira mecânica ou despótica mas sobretudo com
uma força moral que se apoia na liberdade e na consciência do próprio dever e
sentido de responsabilidade" (GS 74).
Sabemos, entretanto, todos que "o
poder tende a corromper-se, e o poder absoluto a corromper-se
absolutamente" (Lord Acton, 1887). E não se trata apenas de uma questão de
corrupção: o poder embriaga pois dá muitas vezes a sensação de que, com ele, se
está a fazer história. E aí se começa a perder a lucidez. Já o próprio Sancho
Pança dizia, antes de começar a governar a Barataria, que "é bom mandar
nem que seja só num curral de gado". Por isso mesmo Jesus prevenia:
"sabeis como os governantes das nações fazem sentir sobre elas a sua
autoridade, e como os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não deve ser
assim entre vós. Quem quiser ser grande faça-se vosso servo, e quem quiser ser
o primeiro faça-se o servo de todos. Também o Filho do Homem não veio para ser
servido mas para servir e dar a sua vida por todos" (Mc 10, 42-45).
No seguimento destas palavras
evangélicas pode conceber-se o propósito de moralizar a política?
Claro que muitos dizem ou disseram que
não. Fundamentalmente os anarquismos que condenam radicalmente todo o poder
político como intrínseca e inevitavelmente injusto, fundamentalmente por duas
razões: a repugnância pela coacção a que todo o poder tem de recorrer, e a
convicção de que o Estado só consegue representar interesses parciais.
Face aos anarquismos levanta-se o
realismo político. Se é verdade que já os romanos diziam que "Salus populi
suprema lex est" (A saúde do povo é a suprema lei), a verdade é que
qualquer poder político, em qualquer lugar ou tempo, em nome das "razões
de Estado", faz este mundo e o outro sem respeitar nem o Direito, nem a
Moral, nem quê, nem quem. E, no entanto, a política não precisa de renunciar à
ética para ser eficaz: "os acontecimentos do ano 1989 são um exemplo do
sucesso da vontade de negociação e do espírito evangélico contra um adversário
decidido a não se deixar vincular por princípios morais; eles são uma
advertência para quantos, em nome do realismo político, querem banir o direito
e a moral da arena política" (CA 25).
Finalmente, há os que defendem que,
embora a política deva reger-se por normas morais, na prática, ela tem
necessariamente de aceitar compromissos imorais: "O bem comum, Senhor, tem
tais larguezas / Com que justifica obras duvidosas. (…) Não se há-de fazer mal
por quantos bens / Se possam daí seguir" (António Ferreira - Castro). São os maquiavelismos de toda a
espécie: mentir (ou, ao menos, dizer apenas meias-verdades), romper
compromissos, sacrificar interesses de uns em favor dos de outros, pactuar
mesmo com iniquidades, exercer pressões e mesmo chantagens, enfim o que a gente
sabe. De resto - dizem - não é verdade que nenhum dos que tentou moralizar a
política - Platão, Cícero, Tomás Moro, Fénelón, etc - exerceu o poder político?
É então coisa diabólica e suja, a
política, como se ouve dizer na esquina da rua? "De facto, a política
causa-me náuseas e mete-me medo. O Estado tem, para mim, algo de demoníaco, ou,
se quisermos, de ladrão. […) Eu não tenho interesse nenhum pessoal em
participar no governo desta República. Reservo-me por isso o posto de maqueiro
para socorrer ou ajudar a suportar as feridas que ele causa às sua
vítimas" (Jimenez Lozano).
Portanto, sujar as mãos na política ou
tentar mantê-las limpas? Há ainda a hipótese de cortá-las fora… para não as
sujar!
Mas é preciso que gente honrada decida
meter as mãos nessa massa espessa e às vezes escura que é a política. Tendo em
conta que o mundo não é nunca ideal, há que ser "astuto como as
serpentes" (Mc 10.16) para não ser posto fora.
Pode ter o Evangelho algo a ver com
esta questão? Que pode trazer a fé à política?
Num artigo que ficou famoso, o teólogo
Chénu, falecido em 1990, defendia que era necessário considerar como próximo
não só as pessoas individuais mas também as massas humanas. De facto -
explicava ele - se posso aproximar-me do outro através de uma presença
imediata, como no caso do bom samaritano, posso também fazê-lo sem essa
presença, comprometendo-me, por exemplo, com a dignificação de colectivos
sociais a que pertenço ou de que sou próximo: chego aos reformados através da Segurança
Social, às empregadas domésticas ou aos emigrantes promovendo, por exemplo,
legislação que proteja os seus direitos, etc. A isto chamava ele "caridade
política", retomando uma expressão que vinha muito de trás, de Pio XI:
"O campo político abarca os interesses da toda a sociedade; neste sentido,
ele é o campo da mais vasta caridade, da caridade política, da caridade para
com a sociedade", dizia o Papa em 1927, com quem Mussolini andava já às
turras.
Mas então que junta a fé ao compromisso
político?
Antes de mais, "cumprindo os seus
deveres civis normais, guiados pela sua consciência cristã e pelos valores a
ela conformes, os fiéis assumem assim o papel que lhes é próprio de animar
cristãmente a ordem temporal … cooperando com todos os mais cidadãos, segundo a
sua competência específica e a sua responsabilidade própria" - dizia
recentemente um documento da Congregação da Fé (Questões sobre o compromisso e o comportamento dos católicos na vida
política, documento da Congregação da Fé de Janeiro de 2003).
No entanto, a fé pode oferecer
fundamentação, motivação e sentido acrescentado ao compromisso político. Não
quer isto dizer que o compromisso político não tenha sentido sem a fé. Quer é
dizer que a fé pode trazer "mais" sentido ao compromisso político
Poder pode. Mas, diga-se desde já, a
sua contribuição ao mundo político será sempre uma contribuição modesta:
modesta porque não podemos sacar da Revelação nenhum modelo para as nossas
sociedades modernas; modesta porque a acção libertadora e humanizadora que se
realiza na História para construir sociedades mais justas não é campo ou
património exclusivo dos crentes (nós não somos os únicos que trabalhamos nessa
direcção; nem os únicos nem talvez os mais trabalhadores). A acção de Deus
realiza-se através do seu Espírito que actua onde quer e quando quer, até nas
pedras! Mas, para além destas razões, há outras, de ordem histórica.
Olhando a história, sabemos que nós, os
cristãos e as comunidades cristãs, não foram, não têm sido, no passado, muito
exemplares neste campo. Não tem sido de monta, nem numérica nem
qualitativamente, o contributo de cristãos no campo da política. O poeta dizia
que, no passado, "entregámos o mundo ao Diabo". Estamos assim a
"pagar pecados antigos". E quando, os cristãos, chegamos ao poder,
deixamos - o Senhor me perdoe se eu peco! - o Evangelho à porta e não somos nem
bons nem melhores que os outros. Vale com os cardeais Richelieu ou Mazarino ou
talvez nem seja preciso ir tão longe.
A fé cristã pode no entanto duas
coisas. E a primeira é que pode fundamentar teológica e mais vigorosamente um
compromisso político que tenha em vista uma sociedade bem diferente das que
vivemos e pode mesmo animar a esperança da sua possibilidade, uma esperança
capaz mesmo de resistir ao fracasso histórico. Nós somos seguidores dum
crucificado que historicamente terminou na cruz. E a nossa história está até
povoada de resistências históricas bem difíceis que, afinal, romperam
impossíveis históricos.
Mas deve também a fé cristã trazer à
vida política valores evangélicos - o espírito das bem-aventuranças - que podem
efectivamente contribuir para a criação de uma sociedade mais justa. Desde
logo, a opção pelos pobres da terra: os marginalizados, os excluídos, os
pequenos, os débeis, os que não contam, os que já deixaram de ser. A memória
daquele que foi crucificado tem que ser hoje, sob pena de não ser autêntica,
memória dos crucificados. Depois, a opção pelo diálogo. Já me chateia ouvir
políticos, gente dos negócios, do futebol, até das artes, a ameaçar publicamente
com o recurso aos tribunais por nicas e tricas. Uma atitude de diálogo que
inclua o que poderia chamar-se o encontro crítico com o mundo e com a
modernidade. Paulo VI dizia que "antes de convertermos o mundo é preciso
acercarmo-nos dele e falar-lhe" (ES 62). Se não o fazemos nós, quem o
fará? Finalmente, dialogar com o mundo, claro, mas, sempre respeitando-lhe a
autonomia. Acabou o tempo em que a Igreja dava regras ao mundo. Hoje é preciso
ser capaz de renunciar a tudo o que seja impor, numa sociedade que é plural e
laica, os nosso próprios valores, por muito convencidos que estejamos deles. E
esta é uma tarefa que é nossa como de todos os mais: há que sentar-se com os
que se sentam, pensar com os que pensam e trabalhar com e como todos os mais,
assumindo a realidade como ela é, respeitando os gritos e as perguntas que ela
lança e coloca.
Por tudo isto é que, para os cristãos,
é de facto importante participar na vida da polis.
10. A
democracia
A palavra Governo carrega uma
multiplicidade de significações. Em sentido lato, refere o executivo do regime
político de uma Nação. Ainda em sentido geral, não existe sociedade sem
governo, por mais rudimentar que seja a sua estrutura ou por mais repartida ou
diluída que se encontre a autoridade. Um mínimo de governo é sempre necessário
para que uma sociedade possa atingir os seus fins, mesmo que eles se resumam a
uma simples vontade de existir.
Ao longo da História houve, e há mesmo
ainda, inúmeras e diferentes formas de formas de governo - aristocracia,
teocracia, império, monarquia, república, etc, etc -, muitas delas combinadas
com outros contributos, ditadura, totalitarismo, democracia, poder popular,
capitalismo de estado, liberalismo, socialismo, etc, etc. Modernamente,
instalou-se progressivamente nos estados do Primeiro Mundo sobretudo a
democracia. Esta, no entanto, pode casar-se com a Monarquia, com a República,
com a própria teocracia, etc.
Sobre a democracia, a Bíblia não nos
diz nada. A palavra quer dizer, à letra, "poder do povo", na linha da
canção tão conhecida que diz que "o povo é quem mais ordena". Para
entendê-la à luz das fontes da fé temos que dar uma pequena volta.
A democracia assenta basicamente numa
convicção: que todos os homens são iguais por natureza e diferentes por função.
Esta ideia, de La Palisse, é fundamental, mas historicamente nem sempre
vigorou; antigamente, por exemplo, pensava-se que os reis o eram por natureza
antes de o serem por função. Eram portanto homens especiais. Ao contrário, na
democracia, os homens são iguais por natureza e diferentes por função. Esta
primigénia ideia democrática que está
de acordo com o Livro do Génesis, que diz que todo o homem e toda a mulher são
imagem de Deus.
Partindo deste princípio, a teologia
medieval manifestou-se já a favor das formas democráticas de governo: "A
melhor constituição para uma cidade ou nação é aquela em que um é o depositário
do poder e tem a presidência sobre todos, de tal modo que alguns participam
desse poder sendo ele, no entanto, de todos; assim, todos podem ser eleitos
para o exercer e todos tomam parte nessa eleição" (S. Tomás de Aquino,
séc. XIII). Este pensamento evoluiu e aprofundou-se, de tal modo que no séc.
XVI, o célebre Suarez, da Escola de Salamanca e também professor em Coimbra,
dizia: "O homem, feito à imagem de Deus, foi criado independente e apenas
a ele submetido; por conseguinte não parece que possa ser justamente submetido
à servidão ou sujeição por qualquer outro homem; logo, um homem não pode ser
forçado a reconhecer outro homem como príncipe e senhor temporal:
consequentemente, autoridade política que usurpe esse senhorio nem é legítima
nem vem de Deus".
Apesar desta clareza, a reflexão cristã
do séc. XIX regrediu voltando a defender a teoria de que Deus outorgava o poder
directamente aos governantes sem passar pelo povo. Era o canto de cisne dos
antigos regimes, a morrerem às mãos das democracias nascentes. Por isso, os
então novos regimes democráticos se viram empurrados para um violento
anticlericalismo adoptando uma atitude sistemática de perseguição contra a
Igreja.
Não foi fácil o caminho da reflexão
cristã ao encontro das "Novas realidades" do século, como sabemos.
Seria só Pio XII a afirmar: "o homem, longe de ser um objecto e um
elemento passivo da vida social, é, ao contrário, e deve sê-lo sempre, o seu
sujeito, fundamento e fim. (…) Manifestar a sua própria opinião sobre os
deveres e os sacrifícios que lhe são impostos, e não ser obrigado a obedecer
sem ter sido escutado, são dois direitos do cidadão que, na democracia, como o
próprio nome diz, encontram uma expressão natural".
O Vaticano II diria ainda melhor:
"É plenamente conforme à natureza
do homem que se encontrem estruturas jurídico-políticas nas quais todos os
cidadãos tenham a possibilidade efectiva de participar livre a activamente, de
um modo cada vez mais perfeito e sem qualquer discriminação, tanto no
estabelecimento das bases jurídicas da comunidade política, como na gestão da
coisa pública e na determinação do campo e fim das várias instituições, e na
escolha dos governantes. (…) É desumano que a autoridade política assuma formas
totalitárias ou ditatoriais que lesem os direitos das pessoas ou dos grupos
sociais" (GS 75).
E, para terminar, João Paulo II:
"A Igreja encara com simpatia o
sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções
políticas e garante aos governados a possibilidade de escolher e controlar os
próprios governantes, e de os substituir pacificamente quando tal se torne
oportuno. (…) A autêntica democracia só é possível num estado de direito e
sobre a base da correcta concepção da pessoa humana" (CA 46).
Esta rápida viagem pela Doutrina evoca
também toda a história política dos séc.s XIX e XX bem como o próprio trajecto
pessoal de muitos dos que, mais velhos, aqui nos encontramos. Hoje, a história
tem já muito de conquistado, é verdade, mas muito mais para conquistar.
Porque a democracia não se esgota na
sua formalidade política. Porque somos todos iguais, mas alguns muito mais iguais que a maioria no que respeita
particularmente aos bens de ordem económica. E também porque, nesta luta que há
ainda para travar, não seremos certamente nós, os cristãos, a ter o papel
preponderante.
Ou estarei mesmo enganado?
11. A
fundamentação ética das leis civis
À entrada da Biblioteca da Universidade
de Salamanca, uma das mais antigas da Europa, um grande letreiro deixava tudo
muito claro: quem roubar um livro que seja (ilícito civil) é punido com pena de
excomunhão (pena canónica), isto é, é excluído da comunidade cristã e da
comunhão eucarística!
Nas últimas semanas, voltou às
primeiras páginas da imprensa mundial o caso de Amina, a mulher nigeriana
divorciada que teve um filho fora do casamento, a quem a lei do país,
transcrita directamente do Alcorão, quer por tal crime aplicar a pena capital: apedrejada até à morte depois de
enterrada viva até à cintura. O clamor mundial faz-se de novo ouvir. No fundo,
a questão da pena da morte, e a questão de saber se uma certa moral religiosa
hoje indefensável, pode continuar a ser reconhecida como lei civil.
Nos dois casos citados, e tantos mais
se poderiam referir, é clara a mistura/confusão entre o religioso e o civil e,
mais do que isso, o transporte de concepções confessionais para a lei civil,
aplicada a todos os cidadãos, mesmo os não crentes.
Ontem como hoje, em Estados mais ou
menos confessionais, eram os princípios religiosos que inspiravam a legislação
civil, muito bem ou muito mal. "Não matarás" na lei religiosa,
"não matarás" na lei civil. E então, quando os Estados deixaram de ser
confessionais e Deus a referência última da legislação civil, que instância
ética pode ou deve substituí-lo? Para esta pergunta há três respostas
possíveis.
Antes de mais a do positivismo
jurídico, que é clara: nenhuma, ou seja, as leis civis não precisam de
qualquer fundamento ético, brotam simplesmente da vontade do legislador: auctoritas non veritas facit legem (é a
autoridade e não a verdade que faz a lei). Claro que este princípio é brutal em
demasia pois reduz a lei e a obediência a ela a uma mera questão de força, como
se se tratasse da obediência a um bandido, a bolsa ou a vida! Hitler pode ser
um exemplo extremo do positivismo jurídico.
A Igreja condenou-o sem paliativos:
"O simples facto de uma lei ter sido promulgada pelo poder legislativo do
Estado por si só não basta. O 'critério do simples facto' só vale para Aquele
que é o Autor e regra soberana de todo o direito: Deus. Aplicá-lo ao legislador
humano indistinta e definitivamente é o erro do positivismo jurídico no sentido
próprio e técnico da palavra, erro que está na base do absolutismo do
Estado" (Pio XII, 1949). De facto, contra o positivismo, há que afirmar
que as leis só se justificam se tiverem fundamento moral. Elas devem dar força
exterior e coactiva a alguns deveres sociais que se nos impõem por consciência
ética.
A ser assim, no entanto, é preciso
encontrar um princípio ou critério objectivo universalmente válido sem o qual
as leis positivas se convertem em meras convenções ou capricho de legisladores.
A esse princípio natural objectivo costuma dar-se o nome de direito natural. O
Direito natural - dizia Santo Agostinho - não é fruto de uma opinião, mas uma
força inata ao homem. Os princípios e imperativos naturais - dizia - são
evidentes por si mesmos, não precisam de ser demonstrados. Sobre eles não há nem
erro nem ignorância.
Esta teoria do Direito natural
foi muito seguida no passado e seria a solução perfeita para a nossa questão
se… não tivesse o inconveniente de não funcionar. Um exemplo só: a Igreja
católica diz que o casamento heterossexual e monogâmico é uma exigência
espontânea da natureza humana, mas os homossexuais e as lésbicas dizem que não.
E agora? Mais do que isso ainda: logicamente que quem afirma que os princípios
do direito natural são "evidentes por si mesmos" e não fruto de uma
demonstração, afirma também que quem não concordar com essa evidência não está
simplesmente equivocado, mas tem uma 'natureza depravada'. Portanto,
homossexuais e lésbicas tudo para a cadeia! E se for num país árabe, tudo
apedrejado!
Muitas vezes, o que safou deste
raciocínio terrivelmente simplista é que coexistiam distintas concepções de
direito natural. É mesmo um facto indesmentível que só muito poucas vezes, para
não dizer nunca, a humanidade conseguiu pôr-se de acordo sobre as exigências
concretas do direito natural. A Igreja bem tentou considerar-se a intérprete
legítima do direito natural, mas nunca conseguiu muito. Nem se pode hoje
pretender que todos acatem a sua opinião num tempo pluralista e não
confessional como é o das sociedades modernas.
A existir alguma solução prática para o
problema da fundamentação ética das leis civis na sociedade pluralista moderna,
é preciso, antes de mais, reconhecer o facto do pluralismo. Nas sociedades
actuais convivem diferentes sistemas morais: há uma ética cristã, uma ética
liberal, uma ética marxista, uma outra muçulmana, etc. No entanto, embora
distintas umas das outras, coincidem todas num núcleo básico bastante mais
alargado do que poderia pensar-se à primeira vista.
11.1. A
ética civil
A Declaração Universal dos Direitos do
Homem da ONU (1948), elaborada por representantes das diversas ideologias e dos
mais variados países, pode dar-nos uma ideia das dimensões que tem hoje o
património ético comum do conjunto da Humanidade. Algo parecido poderia
dizer-se da Declaração por uma Ética Mundial, promovida pelo Parlamento das
Religiões Mundiais, reunido em Chicago em 1993, que recolheu os princípios e
valores éticos presentes em todas as religiões mundiais.
A esse património comum partilhado
digamos que por toda a humanidade convencionou chamar-se "ética civil":
"Estas exigências, ao serem reconhecidas efectivamente na vida social,
constituem um património ético da sociedade historicamente recebido e
historicamente aperfeiçoável. Embora este património não condiga plenamente com
a totalidade da moral social cristã, os católicos podem encontrar nele um
terreno comum para a convivência, ao mesmo tempo que devem esforçar-se por
colaborar no seu enriquecimento pela via do diálogo e da persuasão"
(Bispos espanhóis, 1986).
Poucos crentes compreendem bem o que
pode significar esta solução. Muitos objectam mesmo que a verdade moral não é o
resultado de um consenso e que, portanto, não se podem deixar as decisões
éticas nas mãos da maioria. O que é verdade. Mas numa sociedade pluralista não
parece que haja nenhuma outra instância sobre que possam fundamentar-se as leis
civis: assentemos, portanto, naquilo que todos reconhecemos ser fundamental.
Mais: esse fundamental pode mesmo ser enriquecido, no sentido de alargado. Tal
como no passado se alimentou o património ético comum com os contributos das
distintas religiões e filosofias, é preciso esforçarmo-nos hoje por purificá-lo
e enriquecê-lo de olhos postos no futuro.
Mas alguns crentes, e agora falo de
cristãos, objectam que a ética civil equivale algumas ou muitas vezes a um
menosprezo do Evangelho. Será mesmo assim? Mas a verdade é que a ética civil
não pode converter-se na norma moral única ou a mais importante dos crentes
cristãos cuja conduta deve continuar a ser a da moral cristã (o mesmo acontece
com os demais crentes, que continuarão a reger-se pelas suas respectivas
éticas): "Não seja assim entre vós…", recomendava Jesus (Lc
22,25/27).
A ética civil, que serve única e
exclusivamente para inspirar as leis civis, pode mesmo muitas vezes
corresponder aos mínimos exigidos se
comparada com a moral religiosa. Mesmo assim, a respeitar por todos.
Convém, entretanto, ter presente que
nem todas as exigências éticas devem converter-se em leis civis. Isso
multiplicaria de tal modo as leis que rapidamente se chegaria a um Estado
autenticamente policial. Dizia o escritor italiano Curzio Malaparte (1898-1957)
que um Estado totalitário "é um Estado onde tudo aquilo que não está
proibido é obrigatório".
A missão das leis civis é humilde: elas
não pretendem fazer santos, contentam-se em garantir uma convivência social
ordenada. O critério - dizia S. Tomás de Aquino - é este: as leis não devem
proibir todos os vícios, mas só os mais graves, aqueles que tornem a
convivência impossível. As restantes exigências éticas devem ser cumpridas
pelos cidadãos sem nenhum tipo de coacção, pois que só assim têm valor moral.
De resto, as leis civis devem ter em
conta o grau de maturidade da sociedade a que se destinam. Como dizia com graça
um bispo francês do tempo das primeiras tensões liberais: "quando eu
encomendo uns sapatos ao meu sapateiro, não lhe dou as medidas dos pés de Apolo
mas as dos meus". A imaturidade ética de uma determinada sociedade pode
desaconselhar a proibição legal de alguns vícios - inclusive graves - para
evitar males ainda maiores.
A política, como sabemos, é a arte do
possível. Pretender o impossível tem sempre consequências negativas. Sabemos o
que aconteceu nos Estados Unidos em 1920 com a chamada "lei seca":
calcula-se que 40 ou 50'% da população se transformou em delinquente por
consumir bebidas alcoólicas conseguidas da maneira clandestina. De facto, uma
lei assim não estava adaptada à situação real da sociedade, e acabou por criar
mais problemas que os que, eventualmente, resolveu. Aconteceu até que, certos
fabricantes ilegais, refugiando-se na clandestinidade em que actuavam,
substituíram o álcool etílico por metanol, acabando assim por provocar a
cegueira em muitos consumidores. A lei não poderia senão ter sido derrogada, o
que aconteceu 13 anos depois. Falando da liberdade, Leão XIII escreveu mesmo
assim em 1888: "A Igreja não se opõe a que os poderes públicos tolerem
algumas situações contrárias à verdade a à justiça para evitar um mal maior ou
conservar um bem maior".
11.2. Que
fazer numa democracia às leis injustas?
A história e a experiência dizem que,
tanto nas ditaduras como nas democracias, se promulga(ra)m muitas vezes leis
injustas. Nas ditaduras, nada de admirar, mas nas democracias! O que deve fazer
um cristão?
"Esta nossa sociedade, onde tantas
forças económicas e políticas estão interessadas em conduzir as vidas dos
homens segundo os seus próprios projectos, pede-nos o testemunho e a oferta,
clara e respeitosa, de um ideal de vida e de critérios morais que ajudem a fundamentar
a paz e a justiça" (Bispos espanhóis, 1983). Duas coisas, portanto: em
primeiro lugar, a necessidade de defender publicamente e sem complexos os
valores humanizadores, ainda que tal possa resultar impopular em casos
determinados. Para além disso, que a oferta de que falavam os Bispos espanhóis
deve ser clara e respeitadora. Se a Igreja, noutros tempos, dava ordens, hoje
tem que convencer. E as faltas de respeito, e menos ainda os insultos, nunca
convencem.
Claro que, a haver leis injustas, é
necessário que os cristãos continuem e reger-se não por elas mas pela moral
cristã. E que isto fique claro. Acostumados a uma sociedade e a uma cultura
mais ou menos cristã (para não dizer confessional) em que as leis em princípio
se inspiravam numa moral também cristã, pode haver quem pense que, se a lei
diz, permite ou manda, é porque é bem. Pois bem, pode não ser. Quando as leis
civis permitem comportamentos que a moral cristã reprova, o cristão saberá que
não pode aproveitar-se dessa permissividade. E se alguma vez as leis civis
exigissem a alguém um comportamento contrário às suas convicções? Os mártires
do cristianismo primitivo enfrentaram a morte por causa disso mesmo: e era só
uma questão de queimar uns grãozinhos de incenso, lealdade política!, no altar de
deus-imperador! Nas sociedades democráticas modernas há o recurso à objecção de
consciência, hoje legalmente enquadrada. Como dizia S. Tomás, uma lei injusta
não obriga: "A lei humana tem carácter de lei enquanto se ajusta à recta
razão e, por isso mesmo, deriva da lei eterna. Pelo contrário, na medida em que
se afasta da razão e se converte em lei iníqua, deixa, como tal, de ser lei,
passando a ser violência".
Continua, portanto, a ser verdade que
"é necessário obedecer a Deus, mais que aos homens" (Act 5,29). Este
é um princípio reconhecido universalmente e desde tempos muito anteriores ao
cristianismo. Quando os juízes de Sócrates propunham perdoar-lhe a pena de
morte se ele deixasse de divulgar a sua doutrina, ele respondeu dizendo:
"Agradeço as vossas palavras e estimo-vos muito, atenienses, mas
obedecerei a Deus e não aos homens".
12. Os
Direitos do Homem
Em Portugal, no séc. XVI "os
escravos vendiam-se ao modo de cavalos, de gado ou de quaisquer outros animais
domésticos. A lei comercial em vigor não fazia distinções - as Ordenações
referem-se aos escravos enquanto 'cousas', junto a outros objectos, vivos ou
não. Desta feita, 'um tonel de vinho ou de azeite, ou um servo, ou uma besta',
era tudo passível de venda à prova, sendo estabelecido um determinado tempo
para o comprador se certificar de que estava satisfeito. Os animais enjeitados
podiam ser devolvidos ao vendedor, enquanto os compradores de escravos podiam
exigir o dinheiro de volta se o escravo morresse de doença ou se descobrisse
ser doente" (Saunders - Escravos e
libertos negros em Portugal, Lisboa: INCM, 1982, p. 38).
Espanta-nos hoje uma coisa destas. Como
é possível tenha sido assim! Poderiam multiplicar-se os exemplos para vermos
que tanto a simples expressão como a consciência clara dos Direitos Humanos não
se alcançou senão nos tempos modernos.
E, no entanto, desde a Antiguidade que
ela se perseguia. O exemplo mais antigo será, porventura, o de Péricles que, na
Idade de Ouro grega, disse assim na sua célebre "Oração Fúnebre"
diante dos soldados gregos mortos na guerra do Peloponeso: "De acordo com
as nossas leis, cada qual está em situação de igualdade de direitos nas
dissenções privadas, e é honrado na convivência pública, não pela classe social
a que pertence, mas pelo seu mérito".
Digamos que, no mínimo, começava o
longo caminho da afirmação dos Direitos do Homem na história da Humanidade. Foi
uma grande viagem. Passemos pela Carta Magna do rei inglês João Sem Terra de
1215, demos um salto ao Bill of Rights da Virgínia de 1776, passemos à
Declaração de Independência dos Estados Americanos de 1776, à Declaração
Francesa de Direitos do Homem de 1789, cheguemos à Declaração Universal dos
Direitos do Homem da ONU de 1948, depois à Convenção do Conselho da Europa para
a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950, e ao
Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais e ao Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, assinados em Nova Iorque no âmbito
da ONU em 1966. Já aqui fiz esta história por duas vezes.
De todos os documentos citados pode
dizer-se que, até 1948, se tratava não propriamente de Direitos do Homem mas de
direitos estamentais, ou seja, direitos de um certo grau social. Apesar de ter
afirmado que "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos", logo a Assembleia Nacional Francesa de 1789 se apressou a
interpretar que "os homens" sim, mas só os proprietários e os
brancos.
Para que os Direitos o passassem a ser
de facto, e para todos, entrariam na liça cinco factores decisivos e
determinantes que apenas enumero.
Durante séculos, a Religião jogou o
papel político importantíssimo de cimento aglutinador da sociedade. A partir do
séc. XVI, no entanto, as guerras de religião que se seguiram à Reforma
assentaram na Europa. Juristas e governantes deram-se então conta de que, como
se tornava impossível fundamentar a convivência sobre a religião, era
necessário fazê-lo a partir da liberdade religiosa, ou seja, da tolerância
religiosa. Sarcasticamente como sempre, Voltaire (1694-1778) perguntava:
"Queríeis sustentar através de verdugos a religião de um Deus que outros
verdugos mataram, ele que só tinha pregado misericórdia e paciência?".
Em segundo lugar, os Direitos do Homem
alimentaram-se da oposição dos cidadãos ao poder ilimitado de reis e príncipes
que detinham um poder ilimitado sobre os súbditos: "Da mesma maneira que
se domina um cavalo e quem o monta o dirige para onde quer, assim o rei deve
dirigir o seu povo segundo o seu desejo", dizia um romance medieval. Ou
"O Estado sou eu", dizia Luís XIV.
O terceiro factor foi a luta pela
humanização do direito processual e penal. Melhorar as prisões, acabar com a
crueldade da tortura para arrancar confissões, terminar com penas
desproporcionadas aos delitos cometidos, etc, etc, tudo foi entrando nas
legislações nacionais e faz hoje parte da Declaração Universal dos Direitos do
Homem.
Teve uma enorme influência ainda a luta
pela emancipação das classes trabalhadoras. Marxistas e anarquistas sobretudo
tiveram neste campo um enorme influxo - não esqueçamos o célebre "de cada
um segundo as suas capacidades e a cada um segundo as suas necessidades" -
o que levou a que muitos homens e mulheres se tivessem disposto a dar a vida
pela causa.
Finalmente - não esqueçamos que, em
1789, a Declaração da Revolução Francesa ainda só se referia aos homens - o
movimento feminista que nascera pelo séc. XVIII.
12.1. As
quatro notas dos Direitos do Homem
Todos estes contributos, caldeados,
sonhados e melhorados, levaram à afirmação das quatro notas de todos e cada um
dos Direitos do Homem em concreto.
Chamamos Direitos Humanos a todos
aqueles (direitos) que se atribuem a todos os seres humanos pelo facto de o
serem, isto é, pelo simples facto de serem Homens. São por isso direitos naturais, porque brotam da própria
natureza do Homem. Assim sendo, são anteriores e superiores ao direito
positivo. É verdade que a Lei tem de explicitá-los e garanti-los, mas não é a
Lei que os cria; apenas os descobre, proclama, sanciona e protege. "Não
pode aceitar-se portanto - afirma João XXIII - a doutrina dos que afirmam que a
vontade de cada indivíduo e de certos grupos é a fonte primária e única donde
brotam os direitos e deveres dos cidadãos" (Pacem in Terris 78).
São também invioláveis, isto é, ninguém pode ser privado deles. No entanto,
não são ilimitados porque o exercício do direito próprio termina onde começa o
direito positivo dos outros. Uma pessoa que atente contra os direitos dos
outros pode ser temporariamente privada dos seus.
São inalienáveis, isto é, não só ninguém pode privar um indivíduo dos
seus direitos, como também o próprio indivíduo não pode aliená-los, pois isso
equivaleria a renunciar à condição humana. É legítimo renunciar ao exercício de
um determinado direito, mas não à sua titularidade.
Finalmente, são universais, isto é, válidos para todos, sem excepção.
Estes são os princípios gerais. Com a
sua enunciação, apenas se começou. No capítulo da simples afirmação dos
Direitos Humanos há ainda muito caminho a andar. João XXIII dizia que
"para todos os seres humanos constitui quase um dever pensar que o que já
está realizado é sempre pouco em comparação com o que resta fazer".
12.2. A
fundamentação dos Direitos do Homem
Reconhecer e afirmar os Direitos do
Homem mas fundados em quê?
Todos os humanistas coincidem em
afirmar o valor único da pessoa humana: "O homem é a medida de todas as
coisas" (Protágoras [485-480 aC]); "O homem é fim e nunca meio ou
instrumento; portanto, independentemente da sua maior ou menor utilidade,
reclama um respeito incondicional. (…) Tudo no mundo tem um preço; mas só o
homem uma dignidade" (Kant).
No entanto, servindo-nos unicamente da
razão, não é fácil justificar esta afirmação. Como podemos dizer que a pessoa
humana tem uma dignidade absoluta sendo como somos seres tão contingentes? Como
podemos afirmar a dignidade essencial de todos os seres humanos se, na prática,
as desigualdades - por razão de sexo, de inteligência, de idade, de situação
económica - saltam tanto à vista?
A questão não é fácil de resolver. É
fácil responder que é assim porque é assim (sei lá, por vontade do legislador),
que é assim por intuição não racional, que é assim e portanto estejamos de
acordo que é assim e ninguém se preocupe em perguntar ou justificar porquê… Não
é fácil responder à questão.
A não ser que à pergunta do porquê dos
direitos fundamentais se responda de uma maneira absoluta, a partir da
existência de um ser absoluto, fundamento de tudo, chame-se-lhe Deus ou
qualquer outra coisa, que possa realmente justificar a dignidade da pessoa
humana. "A Paz na Terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os
tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem
instituída por Deus", abria assim João XXIII a sua encíclica Pacem in Terris.
É verdade que somos crentes e, por
isso, para nós, a questão se torna mais fácil. Isto é, os direitos do homem,
naturais, invioláveis, inalienáveis e universais, fundamentam-se em Deus.
Digamos que um não crente, parte, para a afirmação dos Direitos do Homem, não
da fé em Deus mas da fé no homem, o que é mais complicado e até perigoso. Por
quê, em nome do homem se deu quantas vezes cabo do mesmo homem? Ainda não
esquecemos palavras como goulag, o tarrafal, a exploração operária do séc. XIX,
etc.
Para nós, crentes, a questão é mais
fácil, dizia. O fundamento teológico dos Direitos do Homem encontra-se no tema
bíblico do "homem [masculino ou feminino], imagem de Deus" (Gn 1,
26-27). Na religião egípcia, só o faraó era "a imagem viva de Deus na
terra". Mas não assim na judaica.
A pregação de Jesus radicalizaria
depois este ensinamento ao reivindicar a dignidade absoluta do homem -
inclusive do pecador - diante de Deus, e a igualdade de todos os seres humanos
entre si.
A teologia cristã da Incarnação assenta
igualmente nesta absoluta dignidade de toda a pessoa humana. Quando se fez
homem, o Filho de Deus uniu-se à natureza humana, a todos e cada um dos homens,
a ponto de ter dito que "tudo o que fizerdes a um destes mais pequeninos é
a mim que o fazeis" (Mt 25.40).
E não é preciso dizer mais. O que fica
basta para intuir que o homem - dizia Zubiri, o filósofo - é quase, quase
"uma maneira finita de ser Deus". João Paulo II diria assim: "o
profundo maravilhar-se a respeito do valor e dignidade do homem chama-se
Evangelho, isto é, Boa Nova. Chama-se também cristianismo" (RH 10b).
Por isso, é injustificável qualquer
privilégio de uns sobre os outros. Diante de Deus somos todos iguais. "Em
Deus não há acepção de pessoas", diz a Bíblia repetidamente (Gal 2,6; Rom,
2,11; Col 3,25; Act 10,34-35; 1 Ped 1,17). Um homem vale tanto como outro
homem: "Já não há judeu nem grego, escravo nem homem livre, homem nem
mulher, já que sois todos um em Cristo Jesus" (Gal 3,28).
Por isso mesmo, "toda a forma de
discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja de tipo social,
cultural, por motivos de sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião,
deve ser vencida ou eliminada por ser contrária ao plano divino" (GS 29b).
12.3. Os
Direitos de primeira geração
"Todo o indivíduo tem direito à
vida", começa por afirmar a Declaração Universal dos Direitos do Homem da
Onu. "O ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos
recursos correspondentes a um digno padrão de vida", afirmava João XXIII
na Pacem in Terris.
A vida é o bem mais apreciado e também
o primeiro de todos os direitos que pertencem ao indivíduo. Claro que nem
sempre assim foi ou é; por isso se começa por aqui. Certos povos da Antiguidade
- os Lacedemónios, por exemplo - matavam as crianças que nasciam com
deformidades, o que acontece ainda hoje, por exemplo, em alguns povos
africanos! Em 1996 foram ainda condenadas à morte em todo o mundo mais de 7.000
pessoas, tendo sido executadas mais de 4.000 (3.500 na China). E, mudando de
agulha. Em Portugal, morrem em média por mês cinco mulheres vítimas de
violência doméstica. Em Portugal, apesar de todas as vigilâncias,
endurecimentos policiais e tolerâncias zero, morre cada vez mais gente nas
estradas (só no passado mês de Maio, o pior dos últimos 3 anos, morreram 123
pessoas). Os acidentes de trabalho. Agora, assassínios por encomenda. E o
terrorismo de facções versus terrorismo de Estado, para não falar já nos cada
vez mais frequentes genocídios ou limpezas étnicas. Etc.
O direito à vida é o direito
fundamental. No entanto, apesar do "Não matarás" do Decálogo (Ex
20,12 e Dt 5,17), a pena de morte era aplicada em Israel. Só com a Boa Nova de
Jesus, no episódio da adúltera (Jo 8,1-11), ficou claro que ninguém tem o
direito de tirar a vida a outrem porque, de facto, somos todos pecadores. Mesmo
assim… aí estiveram Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, a Inquisição, a
própria 1ª edição do Catecismo da Igreja Católica a justificar a pena de morte,
e etc. Mais recentemente, no entanto, se é verdade que a onda contra a pena de
morte cresce, surgem novos problemas, do aborto à eutanásia.
Na decorrência do direito à vida
afirma-se ainda que "a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as
formas são proibidos" e que "ninguém será submetido a tortura nem a
penas ou tratamentos cruéis, desumanos o degradantes" (ONU 4-5). João
XXIII fala ainda do "direito à liberdade na escolha do próprio estado de
vida" (PT 15).
Todos os demais direitos costumam ser
apresentados hoje por gerações, tendo em conta o momento em que foram
reivindicados e consignados depois por escrito.
Os - assim ditos - direitos de primeira
geração referem, em princípio, os reconhecidos pela Revolução Francesa e
mais tarde consignados na Declaração da Onu de 1948. Pode dar-se-lhes também o
nome de "liberdades": liberdade de pensamento, de consciência e de
religião, de opinião e de expressão, de reunião e associação, de circulação, de
imprensa.
Em princípio, o respeito pelos direitos
de primeira geração - isto é, direitos civis e políticos - só exigem da
sociedade que não interfira na liberdade individual de cada um.
Rapidamente se viu, no entanto, que as
primeiras declarações de Direitos Humanos - e refiro-me particularmente à
americana e à da revolução francesa - recolhiam sobretudo o pensamento e os
interesses da burguesia. Já Marx observava que "nenhum dos chamados
direitos humanos vai além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade
burguesa, do seu interesse e arbítrio privado e dissociado da comunidade".
12.4. Os
direitos de 2ª, 3ª e 4ª geração
Por isso, ainda nos finais do séc. XIX,
se começou a reivindicar uma segunda geração de Direitos Humanos.
Reconhecidos num primeiro momento pela Constituição mexicana (1917) e depois
pela Constituição Alemã dita de Weimar (1919) viriam a ser recolhidos pela Onu:
"Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente que assegure, a
si e à sua família, a saúde e o bem-estar, principalmente no que concerne à
alimentação, ao vestuário, à habitação, à assistência médica e aos serviços
sociais necessários" (artº 25.1), tem "direito à educação que deve
ser gratuita pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental,
devendo o técnico e profissional ser generalizado e o acesso ao superior estar
aberto a todos em plena igualdade, em função do mérito de cada um" (26.1),
e tem ainda o "direito ao trabalho em condições equitativas e
satisfatórias, à sua livre escolha, e à protecção contra o desemprego"
(artº 23.1) e o de "tomar livremente parte na vida cultural da comunidade,
de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que
dele resultam" (artº 27.1).
Em princípio os direitos de segunda
geração - isto é, os direitos sociais, económicos e culturais - exigem a
disponibilidade de abundantes meios económicos para o seu cumprimento. Se os da
primeira geração não fazem o Estado gastar dinheiro, estes, pelo contrário,
exigem-lhe abundantes massas financeiras. Por isso a sua aplicação é muito mais
difícil, e tem claramente de ser progressiva. Por isso ainda, também neste
capítulo, o primeiro Mundo vai à frente, e o Terceiro e mesmo o Quarto muito
atrás.
Ainda que em sentido estrito o sujeito
dos direitos humanos seja cada pessoa, por extensão as comunidades e os povos -
enquanto formados por pessoas humanas - são também titulares ou sujeitos de
direitos fundamentais. Dizem-se de "terceira geração" os
direitos que têm como titulares os povos e, inclusive, a humanidade inteira.
Entre estes devem enumerar-se: o direito ao desenvolvimento (todos os povos da
terra têm direito a disfrutar dos bens e serviços que estão hoje ao alcance da
Humanidade - Onu 1948), o direito a um meio ambiente são (a deterioração da
ecologia é um atentado aos direitos da Humanidade, considerada no seu presente
e no seu futuro), o direito à Paz (todos os habitantes da Terra têm um
"direito sagrado" a nascer e viver em Paz - Declaração sobre o
direito dos Povos à Paz, 1984), direito à autodeterminação (João Paulo II na
50ª Assembleia Geral da Onu, 1995: "Pressuposto dos demais direitos é para
uma nação o seu direito à existência", "tendo embora em conta a dificuldade
de definir o próprio conceito de nação"), e o direito à identidade
cultural (os membros de uma minoria têm direito a que a maioria nada lhes
imponha neste capítulo).
Chamo ainda atenção para um pormenor: a
Declaração da Onu de 1948 não se dizia dos Direitos Humanos mas de
Direitos Humanos. Não refere, portanto, todos os Direitos porque, como
Declaração que é, tem um valor relativo e histórico. De resto, um catálogo
teórico dos Direitos seria ilimitado. Por isso, eles não somente se proclamam
mas, no terreno, precisam de ser defendidos. Isto é, não conhecemos ainda todos
os Direitos Humanos. O célebre Pe Arrupe, Superior Geral dos Jesuítas, dizia:
"Estamos muito longe de esgotar tudo o que pode ser objecto dos direitos
do homem. Do mesmo modo que não sabemos qual o limite das capacidades físicas
humanas quando vemos como se superam marcas [desportivas] que se julgavam
impossíveis de ultrapassar, não podemos saber até onde pode chegar, com o
tempo, uma consciência moral desenvolvida e o sentimento da fraternidade e da
igualdade cristã no que respeita a definir o que é o direito do homem".
Está portanto aberto o caminho aos direitos de quarta geração.
Sempre na mira, o homem criado à imagem
e semelhança de Deus (Gn 1, 27).
A fechar
Por muitas razões, as comunidades não
dispõem hoje de tempos disponíveis para catequeses sistemáticas. Inadiáveis, no
entanto. Penso por isso que, para tal, pode e deve aproveitar-se o instrumento
pastoral chamado homilia. Foi assim em 1996/97 com a Escatologia, foi assim agora,
poderá voltar a ser com outra questão qualquer.
Chego ao fim sem abordar algumas
questões - tantas! - não por serem menos importantes mas por necessidade de
terminar. Ficam para trás, por exemplo, questões a da guerra - justa? ou sempre
injusta? -, a da cultura e da educação, da comunicação social, etc.
A terminar, uma página de João Paulo
II, da Centesimus Annus:
«Nos últimos 100 anos, a Igreja
manifestou repetidamente o seu pensamento, seguindo de perto a evolução
contínua da questão social. Não o fez para recuperar privilégios do passado ou
para impor a sua concepção social. O seu único objectivo era o cuidado e a
responsabilidade pelo homem a ela confiado pelo próprio Cristo: por este homem
que, como o Concílio Vaticano II recorda, é a única criatura sobre a terra a
ser querida por Deus por si mesma, e para a qual Deus tem o seu projecto, isto
é, a participação da salvação eterna. Não se trata do homem abstracto, mas do
homem real, concreto, histórico: trata-se de cada homem, porque cada um foi englobado
no mistério da redenção e Cristo uniu-se com cada um, para sempre, e através
desse mistério. Disto se segue que a Igreja não pode abandonar o homem e que
"este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer na realização
da sua missão (…), o caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que
invariavelmente passa pelo mistério da incarnação e da redenção".
A inspiração que preside à doutrina
social da Igreja é esta, e só esta. Se a foi elaborando pouco a pouco de forma
sistemática, …, é porque toda a riqueza doutrinal da Igreja tem como horizonte
o homem, na sua concreta realidade de pecador e de justo.
A doutrina social hoje especialmente
visa o homem, enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades
modernas. As ciências humanas e a filosofia servem de ajuda para interpretar a
centralidade do homem dentro da sociedade, e para o capacitarem a uma melhor
compreensão de si mesmo, enquanto "ser social". Todavia, somente a fé
lhe revela plenamente a sua verdadeira identidade, e é dela precisamente que
parte a doutrina social da Igreja que, recolhendo todos os contributos das
ciências e da filosofia, se propõe assistir o homem no caminho da redenção.
(…) Daqui resulta que a doutrina
social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto
tal, anuncia Deus e o mistério da salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma
razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente a ela, se ocupa do
resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do proletariado, da família
e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e
internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito
pela vida da concepção até à morte.
A Igreja recebe o "sentido do
homem" da revelação divina. "Para conhecer o homem, o homem
verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer Deus", dizia Paulo VI…
Portanto, a antropologia cristã é realmente um capítulo da teologia e, pela
mesma razão, a doutrina social da Igreja, ocupando-se do homem, interessando-se
por ele e pelo seu modo de se comportar neste mundo, "pertence […] ao
campo da teologia e especialmente da teologia moral". A dimensão teológica
revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas actuais da
convivência humana.»
Termina aqui esta grande citação de
João Paulo II. Por tudo isto resolvi fazer esta longa catequese, contribuindo
assim, como disse já o Vaticano II, para que "os leigos aprendam, antes de
mais, os princípios da doutrina social e as suas conclusões, de modo a tornarem-se
aptos quer a prestarem o seu contributo ao progresso da doutrina quer para
aplicá-los convenientemente aos casos particulares" (AA 31).
Resta-me apenas dizer, por uma questão
de honestidade, que me servi para esta reflexão dos apontamentos que colhi nas
aulas do Professor Luís Carvajal, por ele publicados em vários títulos
dedicados à DSI (Fieles a la Tierra,
Madrid: Comisión Episcopal del Clero, 1995 e Entre la utopía y la realidad, Santander: Sal Terrae, 1998), tudo
acrescentado da minha reflexão pessoal e de dados mais actualizados e quanto
possível referidos à realidade portuguesa.