Cristologia e
Escatologia: um discurso sobre a fé
Uma verdadeira compreensão do sinal do éschaton, só pode se exprimir à luz de Jesus Cristo, e somente nesta perspectiva
poderemos estabelecer a possibilidade ou impossibilidade de um encontro com
Deus no terreno do éschaton e o que este último deverá significa.
Todas as nossas reflexões de cunho escatológico deverão, portanto apoiar-se em
bases cristológicas.
A morte e a ressurreição de Jesus, são os componentes essenciais. Esses dois acontecimentos
compõem como que a moldura dentro da qual se move toda a reflexão cristológica,
as mesma forma a escatológica.
“Se não pode nascer em absoluta solidão, o indivíduo tem que
morrer na solidão mais completa. Em virtude da própria corporeidade, o homem se
acha de tal modo inserido no curso do mundo e da história, que um discurso
sobre a sua ressurreição só é legítimo quando feito à luz do fim do mundo e da
história”. (Alois Winklhofer † 1971).
Movendo-nos em um esquema cristocêntrico, poderíamos chamar a
atenção para o fato de que somente a fé na ressurreição de
Jesus nos dá o direito de crer em uma ressurreição universal, conf. 1Cor 15. Paulo não deseja
aqui polemizar com aqueles que não admitem a universal ressurreição dos mortos
e, por conseguinte, nem admitem a ressurreição de Cristo. Pois, na antiguidade,
a idéia de uma ressurreição dos mortos não era de todo comum nem compartilhada
por todos. O grego não admitia a possibilidade de uma ressurreição da carne, nem tampouco seriamente postulava
uma sobrevivência da alma espiritual. Mostrava-se então facilmente propenso a
interpretar em prisma mitológico o lado escandaloso da ressurreição de Jesus. Quanto ao judeu piedoso, compreendia a ressurreição dos mortos
em termos rigorosamente escatológicos e universais. A sentença “Jesus Crucificado foi ressuscitado dos mortos” deveria parecer aos judeus como
indébita individualização.
Mas, “se a cristologia nos apresenta a
manifestação de Jesus dentro de um quadro essencialmente escatológico, verdade
é também que os mesmos elementos escatológicos da pregação e da praxe de Jesus
contêm uma escatologia implícita” (Willi Marxsen † 1993). Entre os diversos predicados
cristológicos, um de importância decisiva é este: “Ressuscitou”. Nele achamos, de modo sumamente claro e preciso, a nota escatológica
que distingue as confissões de fé em Cristo.
Desta forma, “O caráter de absoluto e
definitividade escatológicos, que marca a figura de Jesus, obriga-nos a
concluir que com Ele já se faz presente, no mundo, o futuro de Deus”. (Dietrich Wiederkehr).
O Deus se manifesta no sinal do éschaton, é Aquele que é “tudo em todas as coisas” (cf. 1Cor 15,28), a realidade
simplesmente, a presença que liberta e ao mesmo tempo envolve tudo e todos. A
atitude escatológica que se terá de assumir, diante d’Ele, e a resposta que Ele
espera, se traduzem na pureza do relacionamento de fé e da relação com Deus, na
total doação e abertura e disponibilidade incondicional. Esta relação que se faz
no encontro escatológico com Deus encontrou sua realização exemplar e
insuperável na assim chamada “fé de Jesus” (Gerhard.
Ebeling)
É nessa trama de relações que se deve, em última instância,
considerar também a “cruz” e a “ressurreição”. Para Jesus, o futuro irrompe no presente e deve
realizar-se no presente. Já os seus inimigos rejeitam esse futuro, tentam
procrastiná-lo, vê-lo num futuro distante, desancorado do presente.
É na cruz que se põe e se resolve, definitivamente, a questão
da autenticidade da fé, de Deus e do futuro. Cruz, porém, que não se deve
dissociar da ressurreição. A cristologia, terá então, também, condições para
nos fazer redescobrir o sentido mais profundo da própria escatologia.
O Crucificado foi ressuscitado! Uma escatologia desenvolvida em
prisma cristológico se apresenta, então, como escatologia realizada.
Cristologia e escatologia somente pode ser corretamente
compreendida caso se leve devidamente em conta a incidência sobre a estrutura
da escatologia determinada pela confissão de fé do cristianismo primitivo:
Jesus crucificado foi ressuscitado dos mortos. À morte e ressurreição de Jesus
corresponde, no plano da escatologia futura, a morte de cada indivíduo e a
ressurreição geral dos mortos, em ambos os casos verificando-se apenas depois
do intervalo de uma permanência no sepulcro. Analogamente, também na
cristologia se reconheceu o intervalo dos 40 dias que o Ressuscitado passou
junto com os discípulos. É a mesma lei estrutural que observamos no modo de
compreender a relação entre escatologia realizada e escatologia futura, ambas
distintas e ligadas pelo intervalo do “tempo da Igreja”. Parte-se da morte para chegar à
vida em seus primórdios para se chegar a uma vida em sua definitiva consumação.
Mas vemos que em Jesus de Nazaré o éschaton é acontecimento meta-histórico, de que só podemos falar do ponto de
vista de uma história interpretada em termos de fé. O “novo mundo” irrevogavelmente prometido em Jesus Cristo já se acha em via de
realização.
Quando se fala de seguir ou imitar a Cristo, o que se pensa
afirmar é justamente o convite a assumir um modo radical de existência que acha
a Deus no sinal do éschaton. O Cristo é o éschaton em pessoa, simbolizado e concretizado, que não pode nunca assumir o lugar
que a Deus pertence no sinal do éschaton.
O anúncio das coisas futuras não deve ser para nós motivo de
sonhos e especulação, mas deve despertar a fé, o verdadeiro temor de Deus e a
esperança. “Julgar até que ponto um homem
resiste ou pode resistir definitivamente a Cristo não está dentro de nossas
possibilidades. Embora seja absolutamente certo que somente a fé em Cristo
salva, ao passo que a incredulidade condena, também não é menos certo que isto
só será manifesto a todos nos últimos dias, e não nos cabe julgar sobre as
possibilidades de que Deus dispõe (…) para levar o homem ao conhecimento da
verdade (…) O discurso do duplo resultado do juízo, como nos atesta o NT, não
pode ser alterado, certamente, em um discurso teológico de happy end (final feliz), mas é também
verdade que só será plenamente correto se nos permite apreender com toda a
seriedade o juízo de um Deus que deseja que todos os homens se salvem e cheguem
ao conhecimento da verdade”. (1Tm 2,4) –W. Kreck.
A escatologia, se de um lado deve proclamar a afirmação do
Reino de Deus, deve por outro reconhecer que a vitória de Deus não pode ser
obtida mediante o aniquilamento do homem.
O acontecimento-Cristo constitui o alicerce real da unidade e
mediação entre protologia e escatologia, entre salvação protológica e salvação
escatológica, sem que isto implique identificar salvação e éschaton. A cristologia mostra, e exemplarmente, qual o caminho por onde se vai à
salvação.
A escatologia cristã deve achar seu ponto de referência na
profissão de fé, segundo a qual Jesus de Nazaré, o Crucificado, foi
ressuscitado. Deve desenvolver-se com base no dado originário, conforme o qual
Aquele de que se fala e se diz que vive não é um morto qualquer da história. Os
testemunhos de fé contidos em o NT nos permitem afirmar, com absoluta segurança,
que os acontecimentos pascais provocaram na comunidade cristã uma mudança de
perspectivas: agora o olhar se dirige para a frente.
“Chamou a atenção de que os
acontecimentos pascais mostram igualmente um componente retrospectivo, que nos
introduz à compreensão do sofrimento e da morte de Cristo, elevado aos céus”. (Jürgen Moltmann) Só à luz de sua ressurreição dentre os mortos é que sua
morte adquire aquele sentido salvífico absolutamente peculiar e único que de
outra forma não poderia assumir, nem à luz de sua vida vivida. A ressurreição
de Jesus não relativiza pois a cruz a ponto de agora fazê-la um dado superado
ou uma fase passageira para a glória celeste, mas a qualifica como
acontecimento salvífico escatológico, pois só ela diz quem propriamente é aquele
que padeceu e morreu.
“A ressurreição dos mortos
qualifica a pessoa do Crucificado e por conseguinte exprime também o sentido
salvífico de sua morte de cruz por nós, os mortos. Não é a ressurreição que
interpreta sua morte de cruz como acontecida por nós, mas vice-versa: é sua
morte de cruz por nós que torna relevante a sua ressurreição diante de nós”. (Jürgen Moltmann) A ressurreição qualifica a cruz como acontecimento
escatológico. A cruz nos anuncia o sentido de sua ressurreição; nela o
Ressuscitado lança o olhar sobre nós e mantém-no fixo sobre nossas pessoas.
Quando se faz a experiência do Deus diante de nós no Deus por
nós. “Deveremos pois dizer que sua morte na cruz é o
‘significado’ que sua ressurreição assume para nós. E vice-versa, toda interpretação
do sentido de sua morte, que não tenha como premissa sua ressurreição dos
mortos, é apenas um dado sem esperança, por ser incapaz de comunicar aquele
novum da vida e salvação que se prefigurou em sua ressurreição. Cristo morreu
não só como vítima de expiação, que teria consentido em restabelecer a justiça
ou reconduzir a seu estado originário a criação caída com o pecado original.
Ele morreu ‘por nós’, para fazer de nós, ‘mortos’ pelo pecado, partícipes de
sua nova vida de ressuscitado e de seu futuro de vida eterna. A sua
ressurreição encerra o significado de uma morte na cruz ‘por nós’, porque o
Ressuscitado não é outro senão o Crucificado. Na medida em que se compreende
sua morte como morte padecida ‘por muitos’, também sua ressurreição dos mortos
há de ser compreendida como ressurreição em favor daqueles que ainda jazem na
morte. Se for correto este ponto de vista, sua morte na cruz ‘por nós’ poderá
ser compreendida como prova da ressurreição. Na medida em que se percebe o
significado vicário de sua morte, também se compreenderá a realidade de sua
ressurreição. Em seu morrer por nós se vê a figura do Ressuscitado, e ela nos
introduz, com Ele, em sua vida. Naquele que por nós se fez pobre se revela a
riqueza de Deus por nós; naquele que se fez por nós escravo ganhamos a
liberdade de Deus; naquele que se fez por nós pecado os pecadores se tornam
justiça de Deus neste mundo” (Jürgen Moltmann)
Cruz e ressurreição não se identificam, mas também não podem
ser separadas uma da outra. A cruz não serve simplesmente para destacar melhor
o brilho que se irradia da ressurreição. Só se podem compreender corretamente
ambas, quando compreendidas em sua real simultaneidade, ou seja, somente sob
condição de que o Ressuscitado não tenha sido por um tempo o Crucificado, mas o
seja para sempre. A unificação de Deus e homem em Jesus Cristo possibilita,
então, uma salutar distinção entre Deus e homem, uma distinção através da qual
se pode igualmente perceber e afirmar a dimensão última e rigorosamente
teológica do fato escatológico.
[
Referência: Feiner
J, Loehrer M., Mysterium Salutis, Do Tempo para a Eternidade, Volume V/3, Ed.
Vozes, Petrópolis, RJ,1985, PP 93-119.